Archive for agosto 2013
Benjamin Button: refletindo os tempos da vida
Ingrid escreve para a coluna Desacomodação.
Esse final de semana assisti um filme
meio batido já, mas que havia passado diversas vezes na minha mão, e, por
alguma interrupção, acabava não vendo. Cheguei ao ponto de locar e devolver sem
ter visto. Dessa vez assisti pelo estímulo de alguém especial no campo das
“sensibilidades” da vida.
Sem querer futriquei nas coisas velhas
do meu pai e encontrei este filme.
Admito não ter assistido muitos filmes
nos últimos tempos, coisa que gostava de fazer e não sei por qual razão fui
secundarizando e parando. Sempre preferi filmes fora da rota norte-americana.
Sem atores do “the Oscar goes to”... mas enfim, dessa vez foi o Brad. Meu amigo
Brad Pitt. Desde que era criança eu já era encantada com ele. Sinal de que o
homem envelheceu e continua no top do meu imaginário. Ainda que muita gente já
tenha falado sobre este filme com muito debate e muitas críticas, resolvi falar
no Benjamin Button. Sabia que era um conto, mas também nunca li. O que me
prendeu para escrever sobre o filme foi a ideia (dessa vez não foi o meu amigo
Brad).
Logo que o filme estava no topo da
onda, a ideia do envelhecimento não me comovia da forma como comove hoje. Acho
que isso me acordou. Beirava os 30 com aquela ideia de adolescente de que
trinta anos era a metade da vida e que seria uma adulta. Os vinte e poucos
ainda nos faz sentir meio adolescente eu acho. Ter feito trinta me despertou
para coisas incríveis, mas também veio junto a ideia de ir deixando algumas
coisas da juventude. Uma pessoa de 60 anos lendo isso vai achar que eu sou uma
exagerada. Mas façamos o exercício da sensação que tiveram ao ultrapassar
marcas. Os 30 é uma. Talvez os 40 outra. Os 50 muito mais. E daí por diante só
vivendo para saber que sensação dará.
Em outro momento escrevi sobre a
exigência da mídia e do mundo do consumo sobre a dura carga que recebemos
diariamente de que não podemos envelhecer. Homens carregam menos esta carga. Mas
as mulheres cotidianamente são cobradas de que não podem envelhecer. E que
riqueza de coisas poderiam ser ditas nessa linha de raciocínio sobre o filme!
Comecei a ter rugas, cabelos brancos, coisas chatas deste tipo. A pele já
começa a ficar mais molenga. E junto de tudo isto a culpa por estar
envelhecendo, pegando sol, indo à luta e correndo riscos. Mas a culpa da culpa
do envelhecimento não é do próprio indivíduo. É sem dúvida nenhuma, da cultura
que estamos que nos diz que o enrugado é feio. Que o velho é obsoleto. Que
estamos perdendo prazo de validade. Mais do que a estética. A essência. Quantos
de nós efetivamente se dispõe a valorizar o poço de sabedoria que carrega uma
pessoa mais velha? Geralmente só depois que nós mesmos começamos a envelhecer e
olhe lá. Não estamos sendo criados nem educados para conhecer a história de
quem vive há mais tempo que nós. Em muitos casos não estamos sendo sequer
orientados ao respeito nas relações com quem é mais velho. Pelo contrário,
diariamente vivemos a intolerância aos que chegaram primeiro.
Uma parte que me chamou muito a
atenção foi quando a Daisy já mais velha que o Benjamin, transa com ele pela
última vez, já com o corpo mais envelhecido e morrendo de vergonha enquanto ele
ficava ainda mais jovem. E, no entanto, o filme faz com que sintamos agonia por
aquele que está rejuvenescendo enquanto o fluxo da vida é envelhecer. O passar
do tempo de Benjamin me provocou angústia, pois ficar mais jovem acabou não
importando, muito pelo contrário, era um relógio ao contrário muito triste em
que o que de fato não se queria passar era pela morte. A morte tão mal
trabalhada em nossa cultura branca ocidental. Mas mais do que isto. Enquanto
Benjamin ficava criança, ia esquecendo sua história. De seu passado. Exatamente
como acontece quando estamos bem velhinhos. Quando estamos totalmente
vulneráveis à confiança de alguém que nos cuide. Chorei muito na cena em que Daisy segura o bebê
no colo tão indefeso. E logo depois Benjamin morre.
A metáfora da eterna necessidade de
que precisamos do “outro” na vida. E até na morte. De que é impossível conceber
sermos humanos e sermos sós. Porém, o
conto promove uma repensada para a morte, mas muito mais do que isto, repensa a
vida. Sim, já me peguei pensando que sou muito velha para aprender algumas
coisas, por exemplo, que exijam algum talento artístico ou físico que não tenha
sido estimulada antes. Depois de mais velha, a personagem nadadora finalmente
conseguiu atravessar o Canal da Mancha. Exemplo banal: futebol, aprendi aos 25
achando que não aprenderia mais porque não me ensinaram no colégio e porque não
era brincadeira de rua de menina, e, portanto, não peguei a “manha” quando
criança. E há muito pouco tempo disse que nunca aprenderia a tocar violão
porque não tenho coordenação motora e já era meu tempo para esse tipo de coisa.
O filme do Benjamin Button me deu um “sacolejo” com uma força tal, que acho que
se eu quisesse aprender a pular de para-quedas (mas quisesse muito), eu iria.
E com isso, pensei que enquanto
estiver viva quero me desafiar a aprender exatamente tudo aquilo que der
vontade e que não sei. Porque do contrário, a vida se passará só na repetição.
Quantas e quantas vezes escutei meu pai dizendo que não faria mais tal coisa
porque estava velho. E diariamente enfiamos na cabeça que estamos velhos demais
para alguma coisa. Baseando-se sempre no humano “prodígio” de que talentoso
nasce assim ou que para saber fazer algo tem que ser muito bom, ou iluminado,
ou predestinado, acabamos não desafiando a nós mesmos. Tampouco injetando
adrenalina, ou hormônios de felicidade. Quantas e quantas pessoas conseguiram
se alfabetizar depois dos 50 anos no Brasil? E que mundo novo colorido
descobriram ao interpretar o mistério lindo das letras? Isso é fantástico. Quantas
e quantas outras só puderam fazer o Ensino Médio ou um curso superior já depois
dos 40? 50? Quanta vida lá fora. Me emociono de lembrar da viagem feita à
Venezuela em 2007, onde conheci uma universidade popular em que os alunos
noturnos eram pessoas mais velhas, trabalhadores e trabalhadoras contando
encantadas da concretização de cursarem Direito, o curso dos seus sonhos, já em
idade bastante madura. Lindo demais. Minha tia-avó, uma pessoa muito especial
que carrego na minha alma, passou a vida inteira esperando pelo meu tio para ir
a algum lugar. Com 60 ou mais, aprendeu a dirigir. Comoção na família. Morria
de medo. Não subia ladeira de jeito nenhum. Teve algumas aulas de direção com o
próprio neto. Hoje com 76 ela vai onde quiser dentro da cidade. E a
possibilidade singela da locomoção que para muitos é banal, abriu-se a ela.
Daisy em diversos momentos, ao se
punir por não poder mais dançar ballet, sua paixão, acabava policiando-se e
repetindo: “jamais sinta autopiedade de novo”. E acho que esse foi um grande
aprendizado. Das coisas que fazíamos e não podemos mais fazer. Das coisas que
nunca fizemos e não sabemos sequer que
somos capazes. Resumindo: chorei como criança, como adulta e como velha. Que
bom poder envelhecer. É um alívio imaginar que ficaremos enrugados, velhos, até
mesmo com dificuldades de locomoção, de memória, com limitações. Mas que
tenhamos tentado e estejamos acima de tudo, vivos para recomeçar tudo de novo a
qualquer tempo que desejarmos.
A day in the life
Helena escreve para a coluna From Hell
Brian morava numa bolha de
plástico e criava porcos. Tia Iara já se convencera de que nada mudaria a vida
daquele rapaz. Era aquele eterno acorda-levanta-dá comida aos porcos-sai da
bolha-lava a cara-volta pra bolha-dá atenção aos porcos-conversa com os
porcos-sai da bolha- entra na bolha (pausa pro narrador esquizofrênico respirar)-
limpa as fezes dos porcos-come-conversa com os porcos-dorme. Tia Iara lamentava
tamanha devoção aos bichos. Aos porcos, as batatas, digo, os louros. Brian
vivia pros porcos, ainda que os porcos vivessem em prol próprio. Brian era
ingênuo, coitado.
- Vai pra rua tomar um ar,
rapazote!
Brian não queria e não
podia. Rua pra quê, se não podia sair da bolha? Tomar um ar? Só podia ser
piada. Até que a bolha era legal. E os porcos, bem, eles não eram os porcos de
Orwell: eram educados e obedientes. Jamais defecavam fora do curral. Não
matavam as amigas e vizinhas galinhas. Nem latiam.
Um dia o porco Cipreste, o
mais velho do bando, acordou injuriado, ainda que não fosse imprudente
francamente. Resolveu ler o horóscopo para tentar controlar a angústia. Afinal,
não seria de bom tom preocupar Brian, visto que era um grande e, ao mesmo
tempo, frágil companheiro.
Gêmeos,
29 de agosto de 2005:
Everywhere there's lots of piggies
Living piggy lives
You can see them out for dinner
With their piggy wives
Clutching forks and knives to eat their bacon.
Living piggy lives
You can see them out for dinner
With their piggy wives
Clutching forks and knives to eat their bacon.
Do outro
lado do mundo, as coisas obedeciam a ordem natural do agridoce cotidiano. Eric
aparava a barba. Julia coava o café. Roland se preparava para pegar o ônibus.
Caetano voltava pra casa. Jordana esqueceu de desligar o forno e explodiu o
quarteirão inteiro. Stanley redigia o discurso de formatura da turma de
doutorandos em reprodução assistida das abelhas.
Foi nesse
mesmo dia em que Brian descobriu o amor. O fatídico 29 de agosto de 2005. O
Velho Major e o porco Cipreste nunca mais receberam milho na boca. Tiveram que
entoar um canto de rebelião e de revolta e, sem obter sucesso, pularam a cerca.
A bolha estourou, Brian morreu por falta de ar: não se sabe se por emoção ou por
puro descontrole. Estupefato. Não morreu de amor, só as prostitutas de José
Alencar conseguiriam tal feito. Pelo menos é o que constava no atestado de
óbito: “falência múltipla dos pulmões”. O coração estava intacto.
A
impostora era uma porca disfarçada de gente. Queria o curral só pra si.
Espantou os outros porcos, matou o pobre Brian tirando-lhe todo ar. Não apelou
pro coração, seria golpe baixo. Até os porcos sabem ser éticos, ela alegaria
tardiamente. Tirou o ar dos pulmões, roubou-lhe o que mais lhe faltava. Tia
Iara fez as malas e foi morar em Yukon.
Jasmine, a
porquinha astuta, agora reina em paz e soberana na
fazenda de Brian. Não tem milho, não tem amigos, só tem terras e sujeira. E
bacon em abundância.
- Será que
ainda tem cerveja na geladeira?
...
Do outro
lado do mundo, eu ganhava na loteria.
The end
Nota do
autor: nenhum animal foi prejudicado durante a produção desta história.
As manifestações e os partidos
Leandro escreve para a coluna O Rei Está Nu
As manifestações que tomaram conta do país em junho
têm nos permitido diversos debates e reflexões políticas, não apenas a cerca de
sua legitimidade ou eficácia quanto aos diferentes métodos de transformação
social, mas principalmente quanto ao papel que exercem os representantes
políticos, partidos, sindicatos e demais organizações burocráticas. O recente
manifesto do PSTU, onde o partido critica abertamente a atuação de grupos mais
radicais que optam por ações diretas contra o capital e as instituições, como
os chamados "Black Blocs" (aqui: http://www.pstu.org.br/node/19855), nos
apresenta de forma muito clara as contradições que surgem nas esquerdas. Faz-se
necessário nesse momento, portanto, buscar compreender esses diferentes
discursos, interesses e possíveis oportunismos que surgem na arena política,
evitando análises ingênuas, simplistas e superficiais.
Mas não é exatamente sobre os protestos e seus
possíveis rumos que eu gostaria de abordar nesse momento. Gostaria de me ater basicamente
ao posicionamento das esquerdas partidárias diante dos protestos, e promover
uma crítica a sua forma de ação e relacionamento com as massas,
independentemente de suas distintas orientações ideológicas. O eixo da minha
análise é o papel que exerce o Partido na concepção dessas esquerdas,
considerado para os alguns segmentos marxistas a "vanguarda
revolucionária", que terá por função guiar e orientar as massas (segundo
eles alienadas, desprovidas de um direcionamento claro) tendo como fim a tomada
do poder para, daí em diante, promover o que chamam de
"socialismo".
"A verdadeira revolução é a ação das massas,
não a de pequenos grupos." diz o PSTU em nota, quando critica a ação dos
grupos anarquistas. Mas o que seriam os partidos de esquerda hoje, a pretensa
"elite intelectual", além de pequenos grupos muito distantes de um
relacionamento concreto com os grupos sociais que supostamente defendem? Que
papel tem exercido essas elites ao longo da história do movimento operário no
Brasil e no mundo e da luta pelo socialismo, se não o da cooptação e a traição
à classe operária? E mais: que tipo de ação exercem hoje e quais benefícios
essas ações tem trazido para a suposta revolução que pretendem? Tais segmentos
da esquerda partidária, como o PSTU, ignoram o papel do indivíduo enquanto ator
político atuante para tomá-lo apenas como integrante das massas, passivo diante
de fatores políticos e econômicos externos, diante das decisões de suas
lideranças. Ignora ainda que todas as manifestações ocorridas no país recentemente
decorrem justamente da ação inicial dos pequenos grupos, que tomaram a
dianteira das manifestações pelo passe livre, desencadeando uma onda de
protestos por todo o país.
Os partidos políticos tem se tornado, ao longo das
últimas décadas, instituições cada vez mais distanciadas dos seus reais
propósitos enquanto instrumentos da classe trabalhadora para sua emancipação .
O que se vê hoje nas ruas, nos protestos que têm ocorrido no Brasil e por todo
o mundo, não é uma juventude despolitizada ou desprovida de ideologia , como
afirmam alguns segmentos esquerdistas, mas uma total crise de representatividade
e de falta de confiança nas instituições burocráticas. O jovem que levanta sua
bandeira "sem partido" nas manifestações não é o jovem que necessita
maior conhecimento e compreensão da importância do papel dos partidos para a organização
da classe trabalhadora, mas sim o jovem que não se vê representado por estes
partidos. Daí decorre a necessidade de se repensar e promover novas formas de
atuação e organização, que superem os instrumentos arcaicos de organização. Faz-se
mais do que necessário que as esquerdas repensem os próprios conceitos de
"organização" e "representação", que em suas concepções
manifestam pretensões políticas de modo geral autoritárias e superadas
historicamente.
Quando o PSTU e demais partidos de esquerda ecoam
tais discursos contra “a falta de um programa
revolucionário” e as ações anticapitalistas isoladas faz um verdadeiro
desserviço à própria revolução que supostamente defende. Afinal, o que seria a
revolução socialista se não uma afronta ao próprio Estado, às instituições
burguesas de repressão e ao capital? Em que medida se faz necessário
conhecimento acadêmico e programa de governo para possuir consciência de classe
e agir concretamente? Ao invés de unirem-se às massas e buscarem compreender
seus anseios e diferentes formas de organização, o PSTU afirma um
posicionamento cada vez mais distanciado das lutas populares, dos grupos que
ousam empreender táticas que fogem ao alcance de suas cartilhas. E pior:
legitimam a própria repressão policial nas manifestações, quando atribuem aos
“Black Blocs” a responsabilidade pela atuação violenta da PM que, segundo eles,
seria apenas uma resposta à violência dos anarquistas. A mediocridade é tão
grande que acabam por assimilar esse discurso conservador, pacífico e ordeiro
das classes dominantes, em nome da defesa de uma suposta “radicalização da democracia” – que democracia? Não se trata
de discutir aqui a eficácia de tais métodos de ataques a bancos e lojas, mas
sim a legitimidade dessas ações enquanto ação simbólica de resistência
anticapitalista. Os “Black Blocs” não constituem grupos organizados e
desprovidos de ideologia ou programa revolucionário, como sugere a nota do
PSTU, representam apenas formas de atuação e resistência.
O Partido é concebido por estes sob os moldes de
uma religião: hierárquica, autoritária e, portanto, antidemocrática, na medida
em que o papel da militância resume-se a acatar as ordens de seus dirigentes.
Seus programas, independentemente de seu viés teórico e ideológico, não
constituem uma afronta à ordem do capital e estão desprovidos de qualquer real pretensão
de transformação social, limitando-se a velhos reformismos. Os mais
"radicais" da esquerda partidária defendem a apropriação pelo Estado
dos bancos e grandes empresas, para a promoção de suas reformas. Mas não
pretendem a emancipação dos trabalhadores, não consideram a atuação efetiva e
fundamental das massas, que em suas concepções não é nada além de instrumento
de manobra, que deverá ser politizada e guiada de acordo com seus propósitos. A
"revolução" que pretendem não é a revolução dos trabalhadores e dos
grupos sociais oprimidos, mas sim a revolução de uma minoria de intelectuais.
Ela não será feita nas ruas, nas lutas de resistência cotidiana, mas sim em
seus gabinetes, nas suas velhas instituições falidas, onde a burocracia
hierarquizada impede a presença e atuação efetiva dos reais interessados na
revolução.
Um artifício bastante recorrente na esquerda
partidária é a analogia de toda e qualquer crítica a política partidária às
ideologias fascistas e aos regimes totalitários, relacionando a abolição dos
partidos nas ditaduras à luta do povo contra toda e qualquer instituição
burocrática. Nada mais anti-marxista do que tal posicionamento, que tende a
desconsiderar a possibilidade da autonomia do povo na medida em que propõe a
política partidária como única alternativa viável.
É necessário buscar novas formas de atuação e
relacionamento com as classes populares. É preciso pensar formas de
auto-organização, que não se limite aos partidos e sindicatos e que não se subordine
a qualquer forma de oportunismo político.
A discussão de viés partidário não interessa aos
trabalhadores, na medida em que personifica questões estruturais complexas e
mina a própria luta de classes, reduzindo-a a uma mera briga de partidos.
Portanto não ajuda a avançar o debate. É preciso superar tais
discursos rasos e reducionistas.
Não falo aqui em produzir cartilhas ou receitas de
bolo para a revolução, mas acredito piamente na autonomia dos trabalhadores e
de todas as camadas sociais oprimidas, em sua capacidade de se organizar e
atuar diretamente na esfera política sem ser cooptado por interesses externos,
sem necessitar de lideranças e quaisquer instituições burocráticas. A revolução
não surge de forma espontânea do dia pra noite, ela não é imediata. Mas se
constrói nas ações cotidianas de resistência a toda e qualquer forma de
opressão, seja ela privada ou Estatal. À revolução não interessa a mera troca
de governos ou sistemas políticos que mantenham a mesma estrutura social, a
mesma divisão entre comandantes e comandados, exploradores e explorados. À
revolução só interessa uma verdadeira mudança de paradigmas que destrua as
velhas instituições e promova, de fato, uma revolução do povo, pelo povo e para
o povo.
O Zé e a carne de pescoço
Ane Brasil escreve para a coluna Soy Contra!
Moravam numa mesma casa 5 manés: o Rafa, o Marcelo, o Rodrigo, o
Alexandre e o Zé.
Um belo dia, Rafa, Marcelo, Rodrigo e Alexandre chegaram do trabalho e
resolveram fazer uma galinhada. chegou mais gente, todo mundo comeu e se
fartou... e alguém lembrou do Zé.
Deixaram um pouquinho pro Zé, mas, nesse pouquinho, só tinha carne de
pescoço.
Ao chegar, exausto e esfomeado, Zé comeu toda a carne de pescoço que havia. E
comia com volúpia.
- Tem mais?
- Tem mais não, véi, ‘cabô!
Passaram-se algumas semanas, nova galinhada... e a história se repetiu: pro Zé,
só a carne de pescoço restou.
Novamente, ao chegar, exaurido e faminto, Zé comeu toda a carne de pescoço que
lhe fora destinada. Elogiou o tempero.
- Só isso?
- É, ‘cabô, tem mais não, véi!
Dali um mês, Zé conseguiu uma folga e calhou de ser, justamente, no dia da tal
galinhada. Então Zé soube que na galinhada ia coxinha, peito, sobrecoxa,
asinha... e carne de pescoço, naturalmente.
Quando Zé serviu no prato duas sobrecoxas...
- Pô, a gente até trouxe mais carne de pescoço pra ti!
- Carne de pescoço?
- É, tu não gosta de carne de pescoço?
- Não, só comi porque era o que tinha e eu 'tava com fome.
(Essa história se aplica ao conteúdo da TV aberta, ao que você vê nas vitrines,
ao que toca nas rádios.... e ao que mais você julgar adequado. A história não é
minha, ouvi de não sei quem, num sei onde, não sei
quando...)
Antes de cometer suicídio, leia Enrique Vila-Matas
Samy escreve para a coluna Sem Título
Afinal, a vida vale ou não vale a pena ser vivida? Essa é a
questão central – e continuamente revisitada - da filosofia de Albert Camus. Em
um período turbulento em decorrência da Segunda Guerra Mundial, tal autor se
propôs a definir o absurdo. No livro O
mito de Sísifo (1942),
afirmou que um homem que se mata acaba por admitir que foi superado pela vida
ou que não a entendeu, sobretudo porque em um mundo que não pode ser explicado,
o homem tende a se sentir como um estrangeiro. O sentimento do absurdo a respeito
da vida foi definido por ele como “a estranheza do mundo; o mal estar perante a
crueldade do homem; a incalculável queda diante da imagem daquilo que somos; a
náusea”.
Cito Camus por um motivo específico: pretendo falar de um livro de
Enrique Vila-Matas. À primeira vista, para quem conhece o trabalho desse
escritor catalão, tal aproximação pode soar estranha. Todavia, Suicídios exemplares (1991) é um livro de contos com foco
em dois temas: vida e negação. As 12 histórias escritas por Vila-Matas giram em torno da possibilidade do suicídio. Fala-se em possibilidade
porque nenhuma das personagens chega a executar tal ato. A narrativa é
entremeada por uma sutil ironia e por uma leve amargura existencialista. O
autor não enfatiza a morte; pelo contrário, ele ressalta como suas personagens
sobrevivem dia após dia. Bem como Camus, Vila-Matas não vê o suicídio como uma
resposta para o absurdo da vida. Reafirma, em cada um de seus contos, que se
deve viver e, por conseguinte, revoltar-se.
O acaso, nessa obra vila-matasiana, também é tema presente. No
conto “O colecionador de tempestades”, a personagem, obcecada pelo suicídio,
programa-o de forma engenhosa e perfeccionista, mas minutos antes de executar
sua vontade, imprevistamente, morre em conseqüência de problemas cardíacos.
Neste momento, a ironia, o ridículo e o absurdo se ligam intimamente. Em “A noite da íris negra”, um casal viaja a uma ilha com um extenso
histórico de suicídios. No decorrer da narrativa, descobrem a existência de uma
sociedade secreta cujos membros compactuam com a ideia de fazer da morte uma
obra independente do acaso. No
conto “Rosa Schwazer volta à vida”, a personagem, descontente com sua
existência, percebe e sente o absurdo, tornando-se obstinada pela ideia de se
matar: “cometer haraquiri, envenenar-se, atirar-se na frente de um carro”.
Entretanto, acaba sempre protelando o inevitável. “Em busca do parceiro
eletrizante” narra a história de um ator infame que sai à procura de um
parceiro para formar uma dupla cômica e, dessa forma, voltar a fazer sucesso.
Porém, descobre que seu parceiro ideal morreu. Assim, visando formar a dupla no
além, pensa em se matar.
Esses contos remetem às reflexões de Friedrich Nietzsche. Para
tal autor, não existindo nenhum direito que permita a um homem tirar a morte de
outro, o pensamento a respeito do suicídio se torna um consolo, pois para
Nietzsche, é pertinente morrer orgulhosamente quando não é mais possível viver
orgulhosamente. Ou seja, por amor à vida deveria se morrer livre e
conscientemente, sem depender do acaso.
Nas demais histórias, todas as personagens são facilmente
comparáveis às pessoas do nosso cotidiano. Todos vivem em meio ao absurdo e se
deixam possuir, uma hora ou outra, pela fantasia de se matar, seja atraindo
raios, tomando estricnina, jogando-se no vazio ou definhando por saudade. Ainda
assim, Suicídios exemplares é um livro que exalta a vida e o
suicídio não é visto como um signo de derrota, mas como uma possibilidade de
controle do homem sobre a sua própria existência.
Onde está o crime e qual a relevância de sê-lo?
Vívian Andrade escreve para a coluna PolemiCÃO
A foto é da polêmica
na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. Para quem não sabe, nesta marcha, um casal
quebrou imagens de santos, e um deles introduziu um crucifixo no ânus. Isso deu
pano pra manga nas redes sociais e fora delas também.
Para mim, o fato de dizer “é crime” significa que tal ação - segundo um manual -é considerada como algo prejudicial e há uma punição para quem a fizer. Nada mais. E dizer que a performance na Marcha das Vadias é um crime não acrescenta em nada a discussão, que pode ser muito rica se não for encerrada dentro da nossa necessidade de encarcerá-la em nossas infinitas classificações prontas, ineficazes e falhas.
Observando como as pessoas se engalfinhavam nas discussões do tema, percebi que a Justiça mais do que nunca se assemelha a uma guerra: é a procura de um deus que se chama Verdade, com o qual eu posso aniquilar meu inimigo e possa justificar seu submetimento através da Razão, coisa contra a qual ninguém poderia argumentar, visto que a Razão se converteu no mesmo que a Verdade (e encontrar uma ou a outra converteu-se em prioridade... e, quem sabe, “a” prioridade). Parece-me que preferimos seguir forçando um resultado ilusoriamente positivo através de testes com os nossos conceitos perfeitos aplicados a uma realidade imperfeita de seres imperfeitos. Que desperdício tentar encontrar a Verdade, quando poderíamos ir muito mais além!
Sempre tudo é muito, muito, muito mais complexo do que se imagina. E se Foucault estava certo e vivemos na sociedade da vigilância; questionar, profanar, inverter e reverter conceitos deveria ser crime. Opa, já é.(Galileu Galilei mandou perguntar qual é mesmo o número do(s) Artigo(s) que criminaliza contestar a tradição).
Discuti
amplamente sobre o acontecido, posicionando-me a favor do protesto e
salientando uma questão que me parece clave: a responsabilidade individual de
fazer parte – por livre e espontânea vontade - de um grupo que prega o ódio a
certas minorias e busca cercear direitos de outras pessoas baseado em normas da
sua religião (e a sua religião é apenas uma dentre as milhares que há e que já
houve). Ou seja, se você vê que o grupo ao qual pertence faz mal a algumas
pessoas e ainda assim você participa dele, você tem responsabilidade pelo mal
que o grupo causa, ainda que não seja você o responsável direto. E se é assim,
você, antes de recriminar tal performance, deveria deixar de participar deste
grupo e ainda pedir desculpas às pessoas das minorias que foram prejudicadas
por você, mesmo que indiretamente. É aquela frase muito batida ultimamente (e
faz falta batê-la mais, pelo visto):
Não confunda a reação do oprimido
com a violência do opressor.
No entanto
não venho a expor minha justificativa aos meus argumentos favoráveis ao acontecimento
em questão. Desta vez, venho trazer à tona uma reflexão mais abstrata e mais
complexa, pois percebi em muitos posts e blogs a alegação de que a tal
performance era um crime. Pessoas, inclusive, sabiam o número dos artigos onde
se enquadrava... pessoas que talvez não saibam o número de mais de dois ou três
artigos da constituição, pessoas talvez que nem sejam tão religiosas. Reparei
como o argumento da ‘lei’ e do ‘crime’ é indiscutível para a maioria delas.
Quando tentei relativizar estes conceitos, alguns me acusaram de mau-caratismo
e de desonestidade. Portanto venho dividir com você o que estive matutando
acerca do crime, da lei e da Justiça.
A expressão
‘guerra justa’ ou injusta é uma expressão que se ouve por aí (no hino do estado
onde nasci, RS, existe a parte “nesta ímpia e injusta guerra”). Isto me fez
refletir sobre
Por que, não raro, a ‘Justiça’ está dentro do campo semântico de
‘Guerra’?
Parece uma
espécie de sem-sentido relacionar guerra à justiça, por dois motivos, na minha
opinião:
1 – Chega-se a uma guerra porque não houve justiça
anteriormente. A guerra, então, seria o cúmulo da injustiça.
2 - Em uma guerra, não ganha quem tem razão, senão o mais
forte.
Alguns dizem
que o esporte seria uma sublimação do desejo de guerra (de matar, humilhar,
subjugar, exterminar o outro). Sendo assim ‘Guerra’ estaria dentro do campo
semântico de ‘Esporte’. Há um desejo (embora se saiba que nem sempre sucede) de
que o esporte tenha um resultado justo, de que se faça justiça, muitas vezes a
justiça que não pode/pôde ser feita na vida real (pensemos em dois países que
estejam em guerra jogando um contra o outro). Neste caso, poderíamos desejar
que ganhasse o jogo aquele time ou aquela equipe que sentimos que tem a razão
no conflito fora do esporte, o que coloca a vitória não só no campo da Justiça,
como também no do ‘ter razão’.
A Razão, a
Verdade - segundo o que eu entendo de Foucault – seriam uma outra dimensão da
realidade, ou seja, um filtro através do qual eu vejo e catalogo toda e
qualquer informação. Ao escutar o que uma pessoa diz, ao reparar em algum
fenômeno, ao decidir que decisões tomarei no próximo dia: tudo isso e todo o
mais passa pelo filtro da Razão. Desta maneira, nos parece imprescindível e
lógico, em qualquer situação, julgar de maneira imparcial (é justo), escutar as
diferentes vozes (é verdadeiro e justo), considerar até onde vai a verdade
(enquadrá-la em padrões), levar em conta o que implica e quais as consequências
de dizê-la, escrevê-la, cogitá-la, etc. (testar no mundo real). Uma vez que
determinamos tudo isso, esta informação (que não deixa de ser o ponto de vista
de alguém, portanto relativíssimo), criamos certas crenças a respeito de um
assunto ou pessoa que se assemelha ao conceito de deus: um conceito que se
chegou através de certas averiguações, incontestável, passível de explicação, válido para todos em
qualquer lugar ou tempo. Já que se sabe que em geral não se morre por ideias e
sim por dogmas - essa Verdade, essa Razão, esse deus -, lutaremos para
defendê-los com unhas e dentes. E como a este deus se chegou por meio da
reflexão – há um método, o resultado encontrado está documentado - este deus é
científico. Eis então um dos fatos/deuses científicos: o crime.
A Justiça é
apenas uma ideia. A Justiça não é possível. Aquilo que buscamos que se realize
e chamamos assim não passa de um arremedo de um ideal. É somente uma tentativa
de conformar a sede de justiça do maior número de indivíduos possíveis. O Poder
Judiciário toma decisões que sejam, de alguma maneira, interpretadas como
justas. Veja bem, não que sejam justas, mas sim que pareçam justas. Quanto a
isso, nós, que não temos o poder de decidir sobre a justiça (e por que não?),
dizemos “ok, com este tipo de ação eu sinto que se fez justiça” ou “sinto algo
que faz menção ou presta homenagem ao conceito perfeito (e por isso existente
apenas no mundo das ideias) e ideológico de Justiça”, “ok, me dou por
satisfeita por essa encenação, com estes símbolos que têm a função de
representar a Justiça”.
Se realmente
tivéssemos interesse em decidir o que é justo, teríamos de avaliar a que
sistemas de valores todas as partes envolvidas estão expostas: quantos deles
permeiam as ações na hora de sentir-se saciadx de Justiça; que posição se toma
(que sistemas ignoro e quais não) na hora de tomar uma decisão dita razoável; que
sistemas de valores devem ser levados em consideração para cada decisão acerca
de um mesmo caso e como escolhê-los; quem terá autoridade para fazer com que sua
palavra seja mais válida, etc. Não é a lei que faz justiça, e tampouco é o
crime a falta dela. Não é porque é crime que é necessariamente mau, e não é
porque foi punido ou há uma punição prescrita que a Justiça se realizou.
Curiosamente, inclusive, existe em direito algo como um perdão judicial para no
caso de que alguém venha a cometer um crime, mas que este já seja uma pena para
aquelx que cometeu (pense no caso de umx bebê que morre asfixiadx por haver
sido esquecidx dentro do carro pelos pais). Este conceito se chama Extinção de
Punibilidade (Art. 107, IX, do Código Penal). É raro, mas existe. Sendo assim,
parece que fazer justiça vai muito além do que vigiar(-se) e punir.
Para mim, o fato de dizer “é crime” significa que tal ação - segundo um manual -é considerada como algo prejudicial e há uma punição para quem a fizer. Nada mais. E dizer que a performance na Marcha das Vadias é um crime não acrescenta em nada a discussão, que pode ser muito rica se não for encerrada dentro da nossa necessidade de encarcerá-la em nossas infinitas classificações prontas, ineficazes e falhas.
Observando como as pessoas se engalfinhavam nas discussões do tema, percebi que a Justiça mais do que nunca se assemelha a uma guerra: é a procura de um deus que se chama Verdade, com o qual eu posso aniquilar meu inimigo e possa justificar seu submetimento através da Razão, coisa contra a qual ninguém poderia argumentar, visto que a Razão se converteu no mesmo que a Verdade (e encontrar uma ou a outra converteu-se em prioridade... e, quem sabe, “a” prioridade). Parece-me que preferimos seguir forçando um resultado ilusoriamente positivo através de testes com os nossos conceitos perfeitos aplicados a uma realidade imperfeita de seres imperfeitos. Que desperdício tentar encontrar a Verdade, quando poderíamos ir muito mais além!
Sempre tudo é muito, muito, muito mais complexo do que se imagina. E se Foucault estava certo e vivemos na sociedade da vigilância; questionar, profanar, inverter e reverter conceitos deveria ser crime. Opa, já é.(Galileu Galilei mandou perguntar qual é mesmo o número do(s) Artigo(s) que criminaliza contestar a tradição).
Através das
leis e das normas, vejo, sobretudo, o intuito de defender o poder e o capital.
Além disso, há implicações muito prejudiciais: através de um sistema muito
habilidoso, nós, pessoas sem poder e sem dinheiro, somos afastados da
possibilidade e do acesso a decidir o que é justo (alienação). E sendo a
Justiça tão importante, sendo a Justiça uma das caras da realidade - boa e
correta, sendo o sistema judicial capaz de retirar todos os direitos de uma
pessoa, inclusive o seu bem mais preciso: sua liberdade... como pode o Poder
Judiciário, as leis, as penas acontecerem sem que tenhamos participação? Como
poderia eu deixar a cargo de outrem a Verdade? Como posso eu, quando me sentir
prejudicado ou for acusado de prejudicar, estar alheio ao que me é justo?
Quem não estiver de acordo, por favor,
debatamo-lo. Mi casa es su casa.
ONDE ESTÁ O AMARILDO, PORRA?
Ane Brasil escreve para a coluna Soy Contra!
ONDE ESTÁ O AMARILDO? CADÊ O AMARILDO? São perguntas que estão povoando as redes
sociais nas últimas semanas. Não sei quem escreveu que o caso Amarildo se
conecta ao caso Rubens Paiva por que ambos entraram vivos em um estabelecimento
das forças de segurança do Estado (Rubens Paiva no DOPS e Amarildo na UPP) e
nunca mais foram vistos... mas Rubens Paiva, parlamentar, homem público foi vítima de um Estado de exceção enquanto
Amarildo, preto, pobre, paisano, foi vítima de um Estado onde a exceção é a
regra. Embora Amarildo seja uma exceção. Quantos outros entraram e não saíram
de unidades de segurança? Quantos foram mortos em “autos de resistência” neste
ano no Brasil? Você sabe? Pois eu não sei, teria que recorrer a São Google pra
te responder... Acontece que cada um desses sujeitos – não os chamarei de
cidadãos, pois tiveram a sua cidadania negada desde sempre – tem nome,
sobrenome, uma mãe, uma história, amigos...
E por que não sabemos quem são? Ora, porque as suas mortes são parte do nosso quotidiano
urbano, porque nos foram descritos como ladrões, malfeitores, marginais... por que
não houve uma voz dissonante pra nos dizer o contrário disso. E por que diabos
com Amarildo foi diferente?
Porque Amarildo não foi só uma vítima, porque Amarildo foi a
gota d’água de um Rio de jaNEURAS onde a polícia se tornou uma facção criminosa
a serviço do Estado. Porque Amarildo foi vitimado num momento em que a grande
impressa não é mais a única detentora da verdade, agora temos um wi-fi na mão e
uma ideia na cabeça... podemos perfeitamente nos comunicar com Rio, Beirute,
Angola, Damasco... sem sairmos do sofá.
Amarildo não é um desaparecido político, é um desaparecido
da política de segurança do Rio de Janeiro, é um desaparecido do sistema
político econômico no qual vivemos, segundo o qual todo o pardo é suspeito,
todo o preto é culpado e todo o pobre é ladrão. Há um rumor de que o corpo de
Amarildo teria sido transportado num caminhão de lixo para um aterro sanitário.
Não há certeza para isso. As ‘otoridadis’ políticas e policiais do RJ vêm tendo
um comportamento vergonhoso nesse caso todo, inventando a cada momento uma
desculpa mais esfarrapada que a outra. A população da Rocinha vem acompanhando,
com dor, com tristeza e com raiva a tudo isso... mas não acompanha calada não,
ela vem se manifestando, vem descendo do morro para o asfalto a fim de manifestar
sua dor, sua ira e esfregando na cara do poder o seu protagonismo político
diante de tudo isso. Não, nunca mais a Rocinha será curral eleitoral, nunca
mais será rebanho. A revolta pode até não ser produtiva, mas, com certeza destruirá
algumas velhas práticas.
E agora, a cereja do bolo:
Carta-presente do passado
Ingrid escreve para a coluna Desacomodação
Esta leitura pode ser para uma(um) neta(o), caso minha filha decida ter. Pode ser para outra criança/jovem que não seja nada minha. Pode ser para quem quiser ler. Mas esta carta vem do passado. Vem de 2013. Alguém que nasceu em 1982. Viveu as lembranças dos anos 90. E dos anos 10. E foram nestes historicamente poucos 30 anos de memória, que vi muita coisa.
Neste passado presente, queria contar algumas coisas.
O intuito deste exercício é um só: pedir a vocês que não naturalizem nada.
Nem tudo é natural. Estranhem tudo. Questionem tudo. Queiram saber de onde saiu. Queiram saber por que é assim. Remontem as histórias das coisas para entender o mundo.
A própria natureza chegou um dia a ser natural. Mas em 2013 já posso afirmar que até a natureza já não é mais tão natural assim. Comemos frutos que já foram tão modificados e já não sabemos como ele seria sem tantos químicos agregados.
A água também chegou a ser natural. Já não é mais. Toda água potável que sai da torneira é uma mutação de nosso próprio descarte. Seja do que vem do esgoto, seja do que vem do lixo.
Na natureza e na vida social. Estranhem.
Estranhem a intolerância doméstica. Estranhem que as pessoas estejam cada vez mais longe umas das outras. E, no entanto, pela internet são as pessoas que mais se amam no mundo. Estranhem a ausência do afeto. Estranhem que as pessoas pouco se tocam. Estranhem que em determinadas profissões é estritamente proibido o toque.
Não naturalizem que as relações mecânicas sejam comuns. Não pensem que é normal um ser humano ser substituído por uma máquina. Estranhem. Um caixa eletrônico, no meu tempo, tirou emprego de muitos seres humanos. Foi uma briga só. Mas já nos acostumamos bem. Estranhem que no tempo de vocês uma máquina cheia de recursos concorrerá por substituir a minha profissão. Estranhem que aprendam por máquinas. Há quem diga que um professor é insubstituível. Será? Tomara. Entendam porque muitos discursam em favor das máquinas, pois são mais potentes que um ser humano. Claro! Estranhem o fato de sermos ensinados que os seres humanos não podem errar.
As pessoas erram. Isso é natural. O natural não é a intolerância ao que erra. Estranhem tudo que for repetição do meu tempo. Nas relações humanas, estranhem hábitos e costumes que passam de pais para filhos e, no entanto, desde já não andam funcionando. Não naturalizem o que é novo, nem o que é velho.
Estranhem como funciona o sistema monetário. Descubram o que acontece quando cifras passam de uma multinacional para outra. Ou quando duas se juntam. Estranhem se até lá só existir uma única loja no mundo que venda desde sapato, passando por cebolas até carros. Estranhem poucos que são donos de tudo.
Não naturalizem que o sistema capitalista destrua a natureza e nada podemos fazer. Percebam que nascemos bebês e a única coisa que sabíamos fazer sem que nos ensinássemos, era chorar e mamar. O resto nós aprendemos.
E tudo que aprendemos, podemos aprender diferente. Podemos estranhar, podemos passar a não achar natural. Podemos perceber que o mundo é gerido por gente.
Estranhem quando ensinarem vocês a não confiarem nas pessoas. A não gostar de gente. Não é natural. Nunca foi. É artificial. Estranhem.
Índios cuidavam de todas as crianças não importava se fossem seus filhos ou não. Em 2013 ainda existem. Alguns poucos tentam manter algo da sua cultura. A grande maioria precisa vender produtos feitos na China para sobreviver e alimentar-se. Estranhem!
Não naturalizem que o ser humano é um ser egoísta. Ele se torna. Isso se a grande maioria ensiná-lo a ser assim. Não pensem que nos 30 anos que tenho de memória de vida foi sempre assim, todo mundo aprendendo a detestar todo mundo. Cheguei a pegar um tempo em que a coisa não era tão feia. Mas está ficando pior. Cada vez pior.
Estranhem a competição. Tem espaço para todo mundo. Mais importante que isso, o mundo produz comida para todo o mundo! Estranhem que algumas pessoas seguirão passando fome no mundo porque precisam estranhar um modo de vida de que quem não tem dinheiro não come. Até lá, não sei se usarão dinheiro, ou apenas uma tarjeta que possui dinheiro imaginário.
Estranhem o dinheiro imaginário. Afastem-se dele para analisá-lo. De onde sai. Eu sei que precisarão comer e usar o plástico mágico. Mas não o naturalizem. Porque enquanto naturalizarem de tal forma consentida, quem estuda para manter tudo como está ou para deixar tudo pior, estará aperfeiçoando novas formas de ganhar mais dinheiro ainda em cima do dinheiro de vocês.
Questionem tudo. Questionem a vida. Questionem a Guerra. A indústria de armas. A indústria da Guerra. Porque certamente, eu estou em 2013 e até as gerações de vocês, muitos lugares estarão em disputa. Sabe quem ganha no vídeo-game? Quem tem mais arma, mais munição. Um dia, em sala de aula, em 2013, eu disse que aqui no Brasil ainda não estávamos vivendo o que vive o Oriente Médio, porque o petróleo ainda manda na economia. Mas não faltam muitas gerações para a riqueza migrar para a água potável.
Onde tem maior concentração de água potável no mundo? Em 2013, não imaginamos um ambiente de guerra militar declarada no Brasil. Imaginamos apenas protestos. Mas estranhem! Muitas guerras acontecem sem as pessoas saberem. Não vivi isso, mas na Ditadura Militar no Brasil, teve quem nem soubesse do que estava acontecendo.
Estranhem a TV. A TV aberta, a TV fechada. Estranhem a forma como as novelas induzem as famílias a se comportarem. Ao comportamento das mulheres. Das crianças.
Na cultura, cuidado! Não naturalizem o que o rádio impor a ouvir. Se aparecer um estilo musical novo, não desqualifiquem, entendam de onde veio e o que significa. E se criarem coisas novas, não se abatam com o conservadorismo de gente que terá minha idade. Porque a guitarra foi um instrumento elétrico que mais chocou o mundo, mais irritou a camada conservadora da sociedade, quando na realidade foi a abertura de grandes processos de gente que não se contentava com imposições. Com consentimentos.
Não é natural que muitas pessoas tenham propriedades privadas incontáveis. Perguntem de onde saiu tudo isso. Terras, quantos hectares de terra um único CPF é capaz de ter? Não é, não foi e nunca será natural.
Respeitem as pessoas. Questionem com solidariedade. Nem todo questionamento precisa ser truculento. Escutem as pessoas. Pergunte a história delas. Pode ser o parente mais próximo. Suas histórias de vida ressignificarão também a de um núcleo familiar inteiro. Entendam seus comportamentos. Porque o ser humano é o único animal capaz de retomar sua história. Nas aldeias indígenas, os mais velhos eram os mais respeitados. Porque carregavam a aldeia de história. Em 2013, maltratamos velhinhos. Marginalizamos sabedoria. Ignoramos a história. Assim a matamos. E deixamos que os outros construam nosso futuro ao não enxergarmos nossa história.
Questionem suas certezas. Eu vivo questionando as minhas. Porque muitas vezes pensamos ter certeza das coisas.
Este termo “desnaturalização”, foi muito utilizado por uma amiga na universidade. Eu espero que ela fique velhinha junto comigo e possamos reescrever muita história.
Sinto a necessidade constante de “desnaturalizar” as coisas, as relações, as ações, tudo. Porque enquanto tem coisas em 2013 que são lindas, tem outras que não são. E s coisas lindas contemplamos, dividimos, solidarizamos, afagamos, abraçamos, partilhamos, sorrimos!
Em 2013 ainda temos flores coloridas para contemplar. Ainda existem pássaros que não apenas pombos nos locais mais poluídos das cidades. Temos árvores. Nos lugares onde o capital não devastou, temos árvores! Não sei quantas teremos na geração de vocês. Mas onde houver alguma, sentem embaixo dela. Lua iluminando um gigantesco mar! Sintam o cheiro da terra. O cheiro de uma flor. A cor de uma flor. O poder do sorriso. Flores te fazem sorrir. Seja menino, seja menina. Não naturalizem que só meninas podem ter o prazer de ver a cor de uma flor. Uma borboleta colorida te faz prestar atenção em seu voo. Espero que conheçam as tantas borboletas que têm no Brasil. Será que ainda existirão joaninhas? Elas são fantásticas! Um inseto pequeno que dá alegria. Acreditem. Encontrei uma, certa vez na praia. Um lugar que jamais imaginaria encontrar uma joaninha. E ela me fez sorrir. Devolvi-a para o meio do mato, pois achei que morreria na areia.
Não tenham medo. Chamarão as pessoas curiosas e questionadoras, por uma eternidade, de chatas. Abstraiam... pois os chatos também sabem sentir satisfação, amor, prazer.
Entre o que houver de novo, e o que conhecerem de velho, desnaturalizem e conheçam melhor. Porque não sei que tipo de carta poderão escrever para a geração dos netos de seus netos, para quem optar ter filhos. Mas que as palavras sigam sendo para sempre, sobretudo, endereçadas aos seres humanos capazes de se colocarem no lugar dos outros enquanto a ordem mundial seguir chamando-se de “Dona Injustiça”. Seja no tempo que for.