Archive for agosto 2013

Benjamin Button: refletindo os tempos da vida

Ingrid escreve para a coluna Desacomodação.

Esse final de semana assisti um filme meio batido já, mas que havia passado diversas vezes na minha mão, e, por alguma interrupção, acabava não vendo. Cheguei ao ponto de locar e devolver sem ter visto. Dessa vez assisti pelo estímulo de alguém especial no campo das “sensibilidades” da vida.
Sem querer futriquei nas coisas velhas do meu pai e encontrei este filme.

Admito não ter assistido muitos filmes nos últimos tempos, coisa que gostava de fazer e não sei por qual razão fui secundarizando e parando. Sempre preferi filmes fora da rota norte-americana. Sem atores do “the Oscar goes to”... mas enfim, dessa vez foi o Brad. Meu amigo Brad Pitt. Desde que era criança eu já era encantada com ele. Sinal de que o homem envelheceu e continua no top do meu imaginário. Ainda que muita gente já tenha falado sobre este filme com muito debate e muitas críticas, resolvi falar no Benjamin Button. Sabia que era um conto, mas também nunca li. O que me prendeu para escrever sobre o filme foi a ideia (dessa vez não foi o meu amigo Brad).

Logo que o filme estava no topo da onda, a ideia do envelhecimento não me comovia da forma como comove hoje. Acho que isso me acordou. Beirava os 30 com aquela ideia de adolescente de que trinta anos era a metade da vida e que seria uma adulta. Os vinte e poucos ainda nos faz sentir meio adolescente eu acho. Ter feito trinta me despertou para coisas incríveis, mas também veio junto a ideia de ir deixando algumas coisas da juventude. Uma pessoa de 60 anos lendo isso vai achar que eu sou uma exagerada. Mas façamos o exercício da sensação que tiveram ao ultrapassar marcas. Os 30 é uma. Talvez os 40 outra. Os 50 muito mais. E daí por diante só vivendo para saber que sensação dará.

Em outro momento escrevi sobre a exigência da mídia e do mundo do consumo sobre a dura carga que recebemos diariamente de que não podemos envelhecer. Homens carregam menos esta carga. Mas as mulheres cotidianamente são cobradas de que não podem envelhecer. E que riqueza de coisas poderiam ser ditas nessa linha de raciocínio sobre o filme! Comecei a ter rugas, cabelos brancos, coisas chatas deste tipo. A pele já começa a ficar mais molenga. E junto de tudo isto a culpa por estar envelhecendo, pegando sol, indo à luta e correndo riscos. Mas a culpa da culpa do envelhecimento não é do próprio indivíduo. É sem dúvida nenhuma, da cultura que estamos que nos diz que o enrugado é feio. Que o velho é obsoleto. Que estamos perdendo prazo de validade. Mais do que a estética. A essência. Quantos de nós efetivamente se dispõe a valorizar o poço de sabedoria que carrega uma pessoa mais velha? Geralmente só depois que nós mesmos começamos a envelhecer e olhe lá. Não estamos sendo criados nem educados para conhecer a história de quem vive há mais tempo que nós. Em muitos casos não estamos sendo sequer orientados ao respeito nas relações com quem é mais velho. Pelo contrário, diariamente vivemos a intolerância aos que chegaram primeiro.

Uma parte que me chamou muito a atenção foi quando a Daisy já mais velha que o Benjamin, transa com ele pela última vez, já com o corpo mais envelhecido e morrendo de vergonha enquanto ele ficava ainda mais jovem. E, no entanto, o filme faz com que sintamos agonia por aquele que está rejuvenescendo enquanto o fluxo da vida é envelhecer. O passar do tempo de Benjamin me provocou angústia, pois ficar mais jovem acabou não importando, muito pelo contrário, era um relógio ao contrário muito triste em que o que de fato não se queria passar era pela morte. A morte tão mal trabalhada em nossa cultura branca ocidental. Mas mais do que isto. Enquanto Benjamin ficava criança, ia esquecendo sua história. De seu passado. Exatamente como acontece quando estamos bem velhinhos. Quando estamos totalmente vulneráveis à confiança de alguém que nos cuide. Chorei muito na cena em que Daisy segura o bebê no colo tão indefeso. E logo depois Benjamin morre.

A metáfora da eterna necessidade de que precisamos do “outro” na vida. E até na morte. De que é impossível conceber sermos humanos e sermos sós.  Porém, o conto promove uma repensada para a morte, mas muito mais do que isto, repensa a vida. Sim, já me peguei pensando que sou muito velha para aprender algumas coisas, por exemplo, que exijam algum talento artístico ou físico que não tenha sido estimulada antes. Depois de mais velha, a personagem nadadora finalmente conseguiu atravessar o Canal da Mancha. Exemplo banal: futebol, aprendi aos 25 achando que não aprenderia mais porque não me ensinaram no colégio e porque não era brincadeira de rua de menina, e, portanto, não peguei a “manha” quando criança. E há muito pouco tempo disse que nunca aprenderia a tocar violão porque não tenho coordenação motora e já era meu tempo para esse tipo de coisa. O filme do Benjamin Button me deu um “sacolejo” com uma força tal, que acho que se eu quisesse aprender a pular de para-quedas (mas quisesse muito), eu iria.

E com isso, pensei que enquanto estiver viva quero me desafiar a aprender exatamente tudo aquilo que der vontade e que não sei. Porque do contrário, a vida se passará só na repetição. Quantas e quantas vezes escutei meu pai dizendo que não faria mais tal coisa porque estava velho. E diariamente enfiamos na cabeça que estamos velhos demais para alguma coisa. Baseando-se sempre no humano “prodígio” de que talentoso nasce assim ou que para saber fazer algo tem que ser muito bom, ou iluminado, ou predestinado, acabamos não desafiando a nós mesmos. Tampouco injetando adrenalina, ou hormônios de felicidade. Quantas e quantas pessoas conseguiram se alfabetizar depois dos 50 anos no Brasil? E que mundo novo colorido descobriram ao interpretar o mistério lindo das letras? Isso é fantástico. Quantas e quantas outras só puderam fazer o Ensino Médio ou um curso superior já depois dos 40? 50? Quanta vida lá fora. Me emociono de lembrar da viagem feita à Venezuela em 2007, onde conheci uma universidade popular em que os alunos noturnos eram pessoas mais velhas, trabalhadores e trabalhadoras contando encantadas da concretização de cursarem Direito, o curso dos seus sonhos, já em idade bastante madura. Lindo demais. Minha tia-avó, uma pessoa muito especial que carrego na minha alma, passou a vida inteira esperando pelo meu tio para ir a algum lugar. Com 60 ou mais, aprendeu a dirigir. Comoção na família. Morria de medo. Não subia ladeira de jeito nenhum. Teve algumas aulas de direção com o próprio neto. Hoje com 76 ela vai onde quiser dentro da cidade. E a possibilidade singela da locomoção que para muitos é banal, abriu-se a ela.


Daisy em diversos momentos, ao se punir por não poder mais dançar ballet, sua paixão, acabava policiando-se e repetindo: “jamais sinta autopiedade de novo”. E acho que esse foi um grande aprendizado. Das coisas que fazíamos e não podemos mais fazer. Das coisas que nunca fizemos e não  sabemos sequer que somos capazes. Resumindo: chorei como criança, como adulta e como velha. Que bom poder envelhecer. É um alívio imaginar que ficaremos enrugados, velhos, até mesmo com dificuldades de locomoção, de memória, com limitações. Mas que tenhamos tentado e estejamos acima de tudo, vivos para recomeçar tudo de novo a qualquer tempo que desejarmos.
sexta-feira, 23 de agosto de 2013
Postado por Mundo Raimundo

A day in the life

Helena escreve para a coluna From Hell  


Brian morava numa bolha de plástico e criava porcos. Tia Iara já se convencera de que nada mudaria a vida daquele rapaz. Era aquele eterno acorda-levanta-dá comida aos porcos-sai da bolha-lava a cara-volta pra bolha-dá atenção aos porcos-conversa com os porcos-sai da bolha- entra na bolha (pausa pro narrador esquizofrênico respirar)- limpa as fezes dos porcos-come-conversa com os porcos-dorme. Tia Iara lamentava tamanha devoção aos bichos. Aos porcos, as batatas, digo, os louros. Brian vivia pros porcos, ainda que os porcos vivessem em prol próprio. Brian era ingênuo, coitado.
- Vai pra rua tomar um ar, rapazote!
Brian não queria e não podia. Rua pra quê, se não podia sair da bolha? Tomar um ar? Só podia ser piada. Até que a bolha era legal. E os porcos, bem, eles não eram os porcos de Orwell: eram educados e obedientes. Jamais defecavam fora do curral. Não matavam as amigas e vizinhas galinhas. Nem latiam.
Um dia o porco Cipreste, o mais velho do bando, acordou injuriado, ainda que não fosse imprudente francamente. Resolveu ler o horóscopo para tentar controlar a angústia. Afinal, não seria de bom tom preocupar Brian, visto que era um grande e, ao mesmo tempo, frágil companheiro.
 Gêmeos, 29 de agosto de 2005:
Everywhere there's lots of piggies
Living piggy lives
You can see them out for dinner 
With their piggy wives
Clutching forks and knives to eat their bacon.

Do outro lado do mundo, as coisas obedeciam a ordem natural do agridoce cotidiano. Eric aparava a barba. Julia coava o café. Roland se preparava para pegar o ônibus. Caetano voltava pra casa. Jordana esqueceu de desligar o forno e explodiu o quarteirão inteiro. Stanley redigia o discurso de formatura da turma de doutorandos em reprodução assistida das abelhas.
Foi nesse mesmo dia em que Brian descobriu o amor. O fatídico 29 de agosto de 2005. O Velho Major e o porco Cipreste nunca mais receberam milho na boca. Tiveram que entoar um canto de rebelião e de revolta e, sem obter sucesso, pularam a cerca. A bolha estourou, Brian morreu por falta de ar: não se sabe se por emoção ou por puro descontrole. Estupefato. Não morreu de amor, só as prostitutas de José Alencar conseguiriam tal feito. Pelo menos é o que constava no atestado de óbito: “falência múltipla dos pulmões”. O coração estava intacto.
A impostora era uma porca disfarçada de gente. Queria o curral só pra si. Espantou os outros porcos, matou o pobre Brian tirando-lhe todo ar. Não apelou pro coração, seria golpe baixo. Até os porcos sabem ser éticos, ela alegaria tardiamente. Tirou o ar dos pulmões, roubou-lhe o que mais lhe faltava. Tia Iara fez as malas e foi morar em Yukon.
Jasmine, a porquinha astuta, agora reina em paz e soberana na fazenda de Brian. Não tem milho, não tem amigos, só tem terras e sujeira. E bacon em abundância.
- Será que ainda tem cerveja na geladeira?
...
Do outro lado do mundo, eu ganhava na loteria.

The end
Nota do autor: nenhum animal foi prejudicado durante a produção desta história.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Postado por Mundo Raimundo

As manifestações e os partidos

Leandro escreve para a coluna O Rei Está Nu

As manifestações que tomaram conta do país em junho têm nos permitido diversos debates e reflexões políticas, não apenas a cerca de sua legitimidade ou eficácia quanto aos diferentes métodos de transformação social, mas principalmente quanto ao papel que exercem os representantes políticos, partidos, sindicatos e demais organizações burocráticas. O recente manifesto do PSTU, onde o partido critica abertamente a atuação de grupos mais radicais que optam por ações diretas contra o capital e as instituições, como os chamados "Black Blocs" (aqui: http://www.pstu.org.br/node/19855), nos apresenta de forma muito clara as contradições que surgem nas esquerdas. Faz-se necessário nesse momento, portanto, buscar compreender esses diferentes discursos, interesses e possíveis oportunismos que surgem na arena política, evitando análises ingênuas, simplistas e superficiais.

Mas não é exatamente sobre os protestos e seus possíveis rumos que eu gostaria de abordar nesse momento. Gostaria de me ater basicamente ao posicionamento das esquerdas partidárias diante dos protestos, e promover uma crítica a sua forma de ação e relacionamento com as massas, independentemente de suas distintas orientações ideológicas. O eixo da minha análise é o papel que exerce o Partido na concepção dessas esquerdas, considerado para os alguns segmentos marxistas a "vanguarda revolucionária", que terá por função guiar e orientar as massas (segundo eles alienadas, desprovidas de um direcionamento claro) tendo como fim a tomada do poder para, daí em diante, promover o que chamam de "socialismo". 
"A verdadeira revolução é a ação das massas, não a de pequenos grupos." diz o PSTU em nota, quando critica a ação dos grupos anarquistas. Mas o que seriam os partidos de esquerda hoje, a pretensa "elite intelectual", além de pequenos grupos muito distantes de um relacionamento concreto com os grupos sociais que supostamente defendem? Que papel tem exercido essas elites ao longo da história do movimento operário no Brasil e no mundo e da luta pelo socialismo, se não o da cooptação e a traição à classe operária? E mais: que tipo de ação exercem hoje e quais benefícios essas ações tem trazido para a suposta revolução que pretendem? Tais segmentos da esquerda partidária, como o PSTU, ignoram o papel do indivíduo enquanto ator político atuante para tomá-lo apenas como integrante das massas, passivo diante de fatores políticos e econômicos externos, diante das decisões de suas lideranças. Ignora ainda que todas as manifestações ocorridas no país recentemente decorrem justamente da ação inicial dos pequenos grupos, que tomaram a dianteira das manifestações pelo passe livre, desencadeando uma onda de protestos por todo o país.

Os partidos políticos tem se tornado, ao longo das últimas décadas, instituições cada vez mais distanciadas dos seus reais propósitos enquanto instrumentos da classe trabalhadora para sua emancipação . O que se vê hoje nas ruas, nos protestos que têm ocorrido no Brasil e por todo o mundo, não é uma juventude despolitizada ou desprovida de ideologia , como afirmam alguns segmentos esquerdistas, mas uma total crise de representatividade e de falta de confiança nas instituições burocráticas. O jovem que levanta sua bandeira "sem partido" nas manifestações não é o jovem que necessita maior conhecimento e compreensão da importância do papel dos partidos para a organização da classe trabalhadora, mas sim o jovem que não se vê representado por estes partidos. Daí decorre a necessidade de se repensar e promover novas formas de atuação e organização, que superem os instrumentos arcaicos de organização. Faz-se mais do que necessário que as esquerdas repensem os próprios conceitos de "organização" e "representação", que em suas concepções manifestam pretensões políticas de modo geral autoritárias e superadas historicamente.


Quando o PSTU e demais partidos de esquerda ecoam tais discursos contra “a falta de um programa revolucionário” e as ações anticapitalistas isoladas faz um verdadeiro desserviço à própria revolução que supostamente defende. Afinal, o que seria a revolução socialista se não uma afronta ao próprio Estado, às instituições burguesas de repressão e ao capital? Em que medida se faz necessário conhecimento acadêmico e programa de governo para possuir consciência de classe e agir concretamente? Ao invés de unirem-se às massas e buscarem compreender seus anseios e diferentes formas de organização, o PSTU afirma um posicionamento cada vez mais distanciado das lutas populares, dos grupos que ousam empreender táticas que fogem ao alcance de suas cartilhas. E pior: legitimam a própria repressão policial nas manifestações, quando atribuem aos “Black Blocs” a responsabilidade pela atuação violenta da PM que, segundo eles, seria apenas uma resposta à violência dos anarquistas. A mediocridade é tão grande que acabam por assimilar esse discurso conservador, pacífico e ordeiro das classes dominantes, em nome da defesa de uma suposta “radicalização da democracia” – que democracia? Não se trata de discutir aqui a eficácia de tais métodos de ataques a bancos e lojas, mas sim a legitimidade dessas ações enquanto ação simbólica de resistência anticapitalista. Os “Black Blocs” não constituem grupos organizados e desprovidos de ideologia ou programa revolucionário, como sugere a nota do PSTU, representam apenas formas de atuação e resistência.
O Partido é concebido por estes sob os moldes de uma religião: hierárquica, autoritária e, portanto, antidemocrática, na medida em que o papel da militância resume-se a acatar as ordens de seus dirigentes. Seus programas, independentemente de seu viés teórico e ideológico, não constituem uma afronta à ordem do capital e estão desprovidos de qualquer real pretensão de transformação social, limitando-se a velhos reformismos. Os mais "radicais" da esquerda partidária defendem a apropriação pelo Estado dos bancos e grandes empresas, para a promoção de suas reformas. Mas não pretendem a emancipação dos trabalhadores, não consideram a atuação efetiva e fundamental das massas, que em suas concepções não é nada além de instrumento de manobra, que deverá ser politizada e guiada de acordo com seus propósitos. A "revolução" que pretendem não é a revolução dos trabalhadores e dos grupos sociais oprimidos, mas sim a revolução de uma minoria de intelectuais. Ela não será feita nas ruas, nas lutas de resistência cotidiana, mas sim em seus gabinetes, nas suas velhas instituições falidas, onde a burocracia hierarquizada impede a presença e atuação efetiva dos reais interessados na revolução.
Um artifício bastante recorrente na esquerda partidária é a analogia de toda e qualquer crítica a política partidária às ideologias fascistas e aos regimes totalitários, relacionando a abolição dos partidos nas ditaduras à luta do povo contra toda e qualquer instituição burocrática. Nada mais anti-marxista do que tal posicionamento, que tende a desconsiderar a possibilidade da autonomia do povo na medida em que propõe a política partidária como única alternativa viável.
É necessário buscar novas formas de atuação e relacionamento com as classes populares. É preciso pensar formas de auto-organização, que não se limite aos partidos e sindicatos e que não se subordine a qualquer forma de oportunismo político.
A discussão de viés partidário não interessa aos trabalhadores, na medida em que personifica questões estruturais complexas e mina a própria luta de classes, reduzindo-a a uma mera briga de partidos. Portanto não ajuda a avançar o debate. É preciso superar tais discursos rasos e reducionistas.

Não falo aqui em produzir cartilhas ou receitas de bolo para a revolução, mas acredito piamente na autonomia dos trabalhadores e de todas as camadas sociais oprimidas, em sua capacidade de se organizar e atuar diretamente na esfera política sem ser cooptado por interesses externos, sem necessitar de lideranças e quaisquer instituições burocráticas. A revolução não surge de forma espontânea do dia pra noite, ela não é imediata. Mas se constrói nas ações cotidianas de resistência a toda e qualquer forma de opressão, seja ela privada ou Estatal. À revolução não interessa a mera troca de governos ou sistemas políticos que mantenham a mesma estrutura social, a mesma divisão entre comandantes e comandados, exploradores e explorados. À revolução só interessa uma verdadeira mudança de paradigmas que destrua as velhas instituições e promova, de fato, uma revolução do povo, pelo povo e para o povo.
terça-feira, 20 de agosto de 2013
Postado por Mundo Raimundo

O Zé e a carne de pescoço

Ane Brasil escreve para a coluna Soy Contra!

Moravam numa mesma casa 5 manés: o Rafa, o Marcelo, o Rodrigo, o Alexandre e o Zé.
Um belo dia, Rafa, Marcelo, Rodrigo e Alexandre chegaram do trabalho e resolveram fazer uma galinhada. chegou mais gente, todo mundo comeu e se fartou... e alguém lembrou do Zé.
Deixaram um pouquinho pro Zé, mas,  nesse pouquinho, só tinha carne de pescoço.
Ao chegar, exausto e esfomeado, Zé comeu toda a carne de pescoço que havia. E comia com volúpia.
- Tem mais?
- Tem mais não, véi, ‘cabô!
Passaram-se algumas semanas, nova galinhada... e a história se repetiu: pro Zé, só a carne de pescoço restou.
Novamente, ao chegar, exaurido e faminto, Zé comeu toda a carne de pescoço que lhe fora destinada. Elogiou o tempero.
- Só isso?
- É, ‘cabô, tem mais não, véi!
Dali um mês, Zé conseguiu uma folga e calhou de ser, justamente, no dia da tal galinhada. Então Zé soube que na galinhada ia coxinha, peito, sobrecoxa, asinha... e carne de pescoço, naturalmente.
Quando Zé serviu no prato duas sobrecoxas...
- Pô, a gente até trouxe mais carne de pescoço pra ti!
- Carne de pescoço?
- É, tu não gosta de carne de pescoço?
- Não, só comi porque era o que tinha e eu 'tava com fome.

(Essa história se aplica ao conteúdo da TV aberta, ao que você vê nas vitrines, ao que toca nas rádios.... e ao que mais você julgar adequado. A história não é minha, ouvi de não sei quem, num sei onde, não sei quando...)


segunda-feira, 19 de agosto de 2013
Postado por Mundo Raimundo

Antes de cometer suicídio, leia Enrique Vila-Matas

Samy escreve para a coluna Sem Título

Afinal, a vida vale ou não vale a pena ser vivida?  Essa é a questão central – e continuamente revisitada - da filosofia de Albert Camus. Em um período turbulento em decorrência da Segunda Guerra Mundial, tal autor se propôs a definir o absurdo. No livro O mito de Sísifo (1942), afirmou que um homem que se mata acaba por admitir que foi superado pela vida ou que não a entendeu, sobretudo porque em um mundo que não pode ser explicado, o homem tende a se sentir como um estrangeiro. O sentimento do absurdo a respeito da vida foi definido por ele como “a estranheza do mundo; o mal estar perante a crueldade do homem; a incalculável queda diante da imagem daquilo que somos; a náusea”.
Cito Camus por um motivo específico: pretendo falar de um livro de Enrique Vila-Matas. À primeira vista, para quem conhece o trabalho desse escritor catalão, tal aproximação pode soar estranha. Todavia, Suicídios exemplares (1991) é um livro de contos com foco em dois temas: vida e negação. As 12 histórias escritas por Vila-Matas giram em torno da possibilidade do suicídio. Fala-se em possibilidade porque nenhuma das personagens chega a executar tal ato. A narrativa é entremeada por uma sutil ironia e por uma leve amargura existencialista. O autor não enfatiza a morte; pelo contrário, ele ressalta como suas personagens sobrevivem dia após dia. Bem como Camus, Vila-Matas não vê o suicídio como uma resposta para o absurdo da vida. Reafirma, em cada um de seus contos, que se deve viver e, por conseguinte, revoltar-se.
O acaso, nessa obra vila-matasiana, também é tema presente. No conto “O colecionador de tempestades”, a personagem, obcecada pelo suicídio, programa-o de forma engenhosa e perfeccionista, mas minutos antes de executar sua vontade, imprevistamente, morre em conseqüência de problemas cardíacos. Neste momento, a ironia, o ridículo e o absurdo se ligam intimamente. Em “A noite da íris negra”, um casal viaja a uma ilha com um extenso histórico de suicídios. No decorrer da narrativa, descobrem a existência de uma sociedade secreta cujos membros compactuam com a ideia de fazer da morte uma obra independente do acaso. No conto “Rosa Schwazer volta à vida”, a personagem, descontente com sua existência, percebe e sente o absurdo, tornando-se obstinada pela ideia de se matar: “cometer haraquiri, envenenar-se, atirar-se na frente de um carro”. Entretanto, acaba sempre protelando o inevitável. “Em busca do parceiro eletrizante” narra a história de um ator infame que sai à procura de um parceiro para formar uma dupla cômica e, dessa forma, voltar a fazer sucesso. Porém, descobre que seu parceiro ideal morreu. Assim, visando formar a dupla no além, pensa em se matar. 
Esses contos remetem às reflexões de Friedrich Nietzsche. Para tal autor, não existindo nenhum direito que permita a um homem tirar a morte de outro, o pensamento a respeito do suicídio se torna um consolo, pois para Nietzsche, é pertinente morrer orgulhosamente quando não é mais possível viver orgulhosamente. Ou seja, por amor à vida deveria se morrer livre e conscientemente, sem depender do acaso.
Nas demais histórias, todas as personagens são facilmente comparáveis às pessoas do nosso cotidiano. Todos vivem em meio ao absurdo e se deixam possuir, uma hora ou outra, pela fantasia de se matar, seja atraindo raios, tomando estricnina, jogando-se no vazio ou definhando por saudade. Ainda assim, Suicídios exemplares é um livro que exalta a vida e o suicídio não é visto como um signo de derrota, mas como uma possibilidade de controle do homem sobre a sua própria existência.






sábado, 17 de agosto de 2013
Postado por Mundo Raimundo

Onde está o crime e qual a relevância de sê-lo?

Vívian Andrade escreve para a coluna PolemiCÃO  



A foto é da polêmica na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. Para quem não sabe, nesta marcha, um casal quebrou imagens de santos, e um deles introduziu um crucifixo no ânus. Isso deu pano pra manga nas redes sociais e fora delas também.


Discuti amplamente sobre o acontecido, posicionando-me a favor do protesto e salientando uma questão que me parece clave: a responsabilidade individual de fazer parte – por livre e espontânea vontade - de um grupo que prega o ódio a certas minorias e busca cercear direitos de outras pessoas baseado em normas da sua religião (e a sua religião é apenas uma dentre as milhares que há e que já houve). Ou seja, se você vê que o grupo ao qual pertence faz mal a algumas pessoas e ainda assim você participa dele, você tem responsabilidade pelo mal que o grupo causa, ainda que não seja você o responsável direto. E se é assim, você, antes de recriminar tal performance, deveria deixar de participar deste grupo e ainda pedir desculpas às pessoas das minorias que foram prejudicadas por você, mesmo que indiretamente. É aquela frase muito batida ultimamente (e faz falta batê-la mais, pelo visto):
Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor.


No entanto não venho a expor minha justificativa aos meus argumentos favoráveis ao acontecimento em questão. Desta vez, venho trazer à tona uma reflexão mais abstrata e mais complexa, pois percebi em muitos posts e blogs a alegação de que a tal performance era um crime. Pessoas, inclusive, sabiam o número dos artigos onde se enquadrava... pessoas que talvez não saibam o número de mais de dois ou três artigos da constituição, pessoas talvez que nem sejam tão religiosas. Reparei como o argumento da ‘lei’ e do ‘crime’ é indiscutível para a maioria delas. Quando tentei relativizar estes conceitos, alguns me acusaram de mau-caratismo e de desonestidade. Portanto venho dividir com você o que estive matutando acerca do crime, da lei e da Justiça.
A expressão ‘guerra justa’ ou injusta é uma expressão que se ouve por aí (no hino do estado onde nasci, RS, existe a parte “nesta ímpia e injusta guerra”). Isto me fez refletir sobre

Por que, não raro, a ‘Justiça’ está dentro do campo semântico de ‘Guerra’?

Parece uma espécie de sem-sentido relacionar guerra à justiça, por dois motivos, na minha opinião:
1 – Chega-se a uma guerra porque não houve justiça anteriormente. A guerra, então, seria o cúmulo da injustiça.
2 - Em uma guerra, não ganha quem tem razão, senão o mais forte.

Alguns dizem que o esporte seria uma sublimação do desejo de guerra (de matar, humilhar, subjugar, exterminar o outro). Sendo assim ‘Guerra’ estaria dentro do campo semântico de ‘Esporte’. Há um desejo (embora se saiba que nem sempre sucede) de que o esporte tenha um resultado justo, de que se faça justiça, muitas vezes a justiça que não pode/pôde ser feita na vida real (pensemos em dois países que estejam em guerra jogando um contra o outro). Neste caso, poderíamos desejar que ganhasse o jogo aquele time ou aquela equipe que sentimos que tem a razão no conflito fora do esporte, o que coloca a vitória não só no campo da Justiça, como também no do ‘ter razão’.
A Razão, a Verdade - segundo o que eu entendo de Foucault – seriam uma outra dimensão da realidade, ou seja, um filtro através do qual eu vejo e catalogo toda e qualquer informação. Ao escutar o que uma pessoa diz, ao reparar em algum fenômeno, ao decidir que decisões tomarei no próximo dia: tudo isso e todo o mais passa pelo filtro da Razão. Desta maneira, nos parece imprescindível e lógico, em qualquer situação, julgar de maneira imparcial (é justo), escutar as diferentes vozes (é verdadeiro e justo), considerar até onde vai a verdade (enquadrá-la em padrões), levar em conta o que implica e quais as consequências de dizê-la, escrevê-la, cogitá-la, etc. (testar no mundo real). Uma vez que determinamos tudo isso, esta informação (que não deixa de ser o ponto de vista de alguém, portanto relativíssimo), criamos certas crenças a respeito de um assunto ou pessoa que se assemelha ao conceito de deus: um conceito que se chegou através de certas averiguações, incontestável,   passível de explicação, válido para todos em qualquer lugar ou tempo. Já que se sabe que em geral não se morre por ideias e sim por dogmas - essa Verdade, essa Razão, esse deus -, lutaremos para defendê-los com unhas e dentes. E como a este deus se chegou por meio da reflexão – há um método, o resultado encontrado está documentado - este deus é científico. Eis então um dos fatos/deuses científicos: o crime.

A Justiça é apenas uma ideia. A Justiça não é possível. Aquilo que buscamos que se realize e chamamos assim não passa de um arremedo de um ideal. É somente uma tentativa de conformar a sede de justiça do maior número de indivíduos possíveis. O Poder Judiciário toma decisões que sejam, de alguma maneira, interpretadas como justas. Veja bem, não que sejam justas, mas sim que pareçam justas. Quanto a isso, nós, que não temos o poder de decidir sobre a justiça (e por que não?), dizemos “ok, com este tipo de ação eu sinto que se fez justiça” ou “sinto algo que faz menção ou presta homenagem ao conceito perfeito (e por isso existente apenas no mundo das ideias) e ideológico de Justiça”, “ok, me dou por satisfeita por essa encenação, com estes símbolos que têm a função de representar a Justiça”.
Se realmente tivéssemos interesse em decidir o que é justo, teríamos de avaliar a que sistemas de valores todas as partes envolvidas estão expostas: quantos deles permeiam as ações na hora de sentir-se saciadx de Justiça; que posição se toma (que sistemas ignoro e quais não) na hora de tomar uma decisão dita razoável; que sistemas de valores devem ser levados em consideração para cada decisão acerca de um mesmo caso e como escolhê-los; quem terá autoridade para fazer com que sua palavra seja mais válida, etc. Não é a lei que faz justiça, e tampouco é o crime a falta dela. Não é porque é crime que é necessariamente mau, e não é porque foi punido ou há uma punição prescrita que a Justiça se realizou. Curiosamente, inclusive, existe em direito algo como um perdão judicial para no caso de que alguém venha a cometer um crime, mas que este já seja uma pena para aquelx que cometeu (pense no caso de umx bebê que morre asfixiadx por haver sido esquecidx dentro do carro pelos pais). Este conceito se chama Extinção de Punibilidade (Art. 107, IX, do Código Penal). É raro, mas existe. Sendo assim, parece que fazer justiça vai muito além do que vigiar(-se) e punir.

Para mim, o fato de dizer “é crime” significa que tal ação - segundo um manual -é considerada como algo prejudicial e há uma punição para quem a fizer. Nada mais. E dizer que a performance na Marcha das Vadias é um crime não acrescenta em nada a discussão, que pode ser muito rica se não for encerrada dentro da nossa necessidade de encarcerá-la em nossas infinitas classificações prontas, ineficazes e falhas.

Observando como as pessoas se engalfinhavam nas discussões do tema, percebi que a Justiça mais do que nunca se assemelha a uma guerra: é a procura de um deus que se chama Verdade, com o qual eu posso aniquilar meu inimigo e possa justificar seu submetimento através da Razão, coisa contra a qual ninguém poderia argumentar, visto que a Razão se converteu no mesmo que a Verdade (e encontrar uma ou a outra converteu-se em prioridade... e, quem sabe, “a” prioridade).  Parece-me que preferimos seguir forçando um resultado ilusoriamente positivo através de testes com os nossos conceitos perfeitos aplicados a uma realidade imperfeita de seres imperfeitos. Que desperdício tentar encontrar a Verdade, quando poderíamos ir muito mais além!

Sempre tudo é muito, muito, muito mais complexo do que se imagina. E se Foucault estava certo e vivemos na sociedade da vigilância; questionar, profanar, inverter e reverter conceitos deveria ser crime. Opa, já é.(Galileu Galilei mandou perguntar qual é mesmo o número do(s) Artigo(s) que criminaliza contestar a tradição).
Através das leis e das normas, vejo, sobretudo, o intuito de defender o poder e o capital. Além disso, há implicações muito prejudiciais: através de um sistema muito habilidoso, nós, pessoas sem poder e sem dinheiro, somos afastados da possibilidade e do acesso a decidir o que é justo (alienação). E sendo a Justiça tão importante, sendo a Justiça uma das caras da realidade - boa e correta, sendo o sistema judicial capaz de retirar todos os direitos de uma pessoa, inclusive o seu bem mais preciso: sua liberdade... como pode o Poder Judiciário, as leis, as penas acontecerem sem que tenhamos participação? Como poderia eu deixar a cargo de outrem a Verdade? Como posso eu, quando me sentir prejudicado ou for acusado de prejudicar, estar alheio ao que me é justo?

 Quem não estiver de acordo, por favor, debatamo-lo. Mi casa es su casa.


sexta-feira, 16 de agosto de 2013
Postado por Mundo Raimundo

ONDE ESTÁ O AMARILDO, PORRA?

Ane Brasil escreve para a coluna Soy Contra!

    ONDE ESTÁ O AMARILDO? CADÊ O AMARILDO?  São perguntas que estão povoando as redes sociais nas últimas semanas. Não sei quem escreveu que o caso Amarildo se conecta ao caso Rubens Paiva por que ambos entraram vivos em um estabelecimento das forças de segurança do Estado (Rubens Paiva no DOPS e Amarildo na UPP) e nunca mais foram vistos... mas Rubens Paiva, parlamentar, homem público  foi vítima de um Estado de exceção enquanto Amarildo, preto, pobre, paisano, foi vítima de um Estado onde a exceção é a regra. Embora Amarildo seja uma exceção. Quantos outros entraram e não saíram de unidades de segurança? Quantos foram mortos em “autos de resistência” neste ano no Brasil? Você sabe? Pois eu não sei, teria que recorrer a São Google pra te responder... Acontece que cada um desses sujeitos – não os chamarei de cidadãos, pois tiveram a sua cidadania negada desde sempre – tem nome, sobrenome, uma mãe, uma história, amigos...
    E por que não sabemos quem são? Ora, porque  as suas mortes são parte do nosso quotidiano urbano, porque nos foram descritos como ladrões, malfeitores, marginais... por que não houve uma voz dissonante pra nos dizer o contrário disso. E por que diabos com Amarildo foi diferente?
    Porque Amarildo não foi só uma vítima, porque Amarildo foi a gota d’água de um Rio de jaNEURAS onde a polícia se tornou uma facção criminosa a serviço do Estado. Porque Amarildo foi vitimado num momento em que a grande impressa não é mais a única detentora da verdade, agora temos um wi-fi na mão e uma ideia na cabeça... podemos perfeitamente nos comunicar com Rio, Beirute, Angola, Damasco... sem sairmos do sofá.
    Amarildo não é um desaparecido político, é um desaparecido da política de segurança do Rio de Janeiro, é um desaparecido do sistema político econômico no qual vivemos, segundo o qual todo o pardo é suspeito, todo o preto é culpado e todo o pobre é ladrão. Há um rumor de que o corpo de Amarildo teria sido transportado num caminhão de lixo para um aterro sanitário. Não há certeza para isso. As ‘otoridadis’ políticas e policiais do RJ vêm tendo um comportamento vergonhoso nesse caso todo, inventando a cada momento uma desculpa mais esfarrapada que a outra. A população da Rocinha vem acompanhando, com dor, com tristeza e com raiva a tudo isso... mas não acompanha calada não, ela vem se manifestando, vem descendo do morro para o asfalto a fim de manifestar sua dor, sua ira e esfregando na cara do poder o seu protagonismo político diante de tudo isso. Não, nunca mais a Rocinha será curral eleitoral, nunca mais será rebanho. A revolta pode até não ser produtiva, mas, com certeza destruirá algumas velhas práticas.

    E agora, a cereja do bolo: 
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Postado por Mundo Raimundo

Carta-presente do passado

Ingrid escreve para a coluna Desacomodação
Esta leitura pode ser para uma(um) neta(o), caso minha filha decida ter. Pode ser para outra criança/jovem que não seja nada minha. Pode ser para quem quiser ler. Mas esta carta vem do passado. Vem de 2013. Alguém que nasceu em 1982. Viveu as lembranças dos anos 90. E dos anos 10. E foram nestes historicamente poucos 30 anos de memória, que vi muita coisa.

Neste passado presente, queria contar algumas coisas.

O intuito deste exercício é um só: pedir a vocês que não naturalizem nada.

Nem tudo é natural. Estranhem tudo. Questionem tudo. Queiram saber de onde saiu. Queiram saber por que é assim. Remontem as histórias das coisas para entender o mundo.

A própria natureza chegou um dia a ser natural. Mas em 2013 já posso afirmar que até a natureza já não é mais tão natural assim. Comemos frutos que já foram tão modificados e já não sabemos como ele seria sem tantos químicos agregados.

A água também chegou a ser natural. Já não é mais. Toda água potável que sai da torneira é uma mutação de nosso próprio descarte. Seja do que vem do esgoto, seja do que vem do lixo.

Na natureza e na vida social. Estranhem.

Estranhem a intolerância doméstica. Estranhem que as pessoas estejam cada vez mais longe umas das outras. E, no entanto, pela internet são as pessoas que mais se amam no mundo. Estranhem a ausência do afeto. Estranhem que as pessoas pouco se tocam. Estranhem que em determinadas profissões é estritamente proibido o toque. 

Não naturalizem que as relações mecânicas sejam comuns. Não pensem que é normal um ser humano ser substituído por uma máquina. Estranhem. Um caixa eletrônico, no meu tempo, tirou emprego de muitos seres humanos. Foi uma briga só. Mas já nos acostumamos bem. Estranhem que no tempo de vocês uma máquina cheia de recursos concorrerá por substituir a minha profissão. Estranhem que aprendam por máquinas. Há quem diga que um professor é insubstituível. Será? Tomara. Entendam porque muitos discursam em favor das máquinas, pois são mais potentes que um ser humano. Claro! Estranhem o fato de sermos ensinados que os seres humanos não podem errar.

As pessoas erram. Isso é natural. O natural não é a intolerância ao que erra. Estranhem tudo que for repetição do meu tempo. Nas relações humanas, estranhem hábitos e costumes que passam de pais para filhos e, no entanto, desde já não andam funcionando. Não naturalizem o que é novo, nem o que é velho.

Estranhem como funciona o sistema monetário. Descubram o que acontece quando cifras passam de uma multinacional para outra. Ou quando duas se juntam. Estranhem se até lá só existir uma única loja no mundo que venda desde sapato, passando por cebolas até carros. Estranhem poucos que são donos de tudo.

Não naturalizem que o sistema capitalista destrua a natureza e nada podemos fazer. Percebam que nascemos bebês e a única coisa que sabíamos fazer sem que nos ensinássemos, era chorar e mamar. O resto nós aprendemos.

E tudo que aprendemos, podemos aprender diferente. Podemos estranhar, podemos passar a não achar natural. Podemos perceber que o mundo é gerido por gente.

Estranhem quando ensinarem vocês a não confiarem nas pessoas. A não gostar de gente. Não é natural. Nunca foi. É artificial. Estranhem.

Índios cuidavam de todas as crianças não importava se fossem seus filhos ou não. Em 2013 ainda existem. Alguns poucos tentam manter algo da sua cultura. A grande maioria precisa vender produtos feitos na China para sobreviver e alimentar-se. Estranhem!

Não naturalizem que o ser humano é um ser egoísta. Ele se torna. Isso se a grande maioria ensiná-lo a ser assim. Não pensem que nos 30 anos que tenho de memória de vida foi sempre assim, todo mundo aprendendo a detestar todo mundo. Cheguei a pegar um tempo em que a coisa não era tão feia. Mas está ficando pior. Cada vez pior.

Estranhem a competição. Tem espaço para todo mundo. Mais importante que isso, o mundo produz comida para todo o mundo! Estranhem que algumas pessoas seguirão passando fome no mundo porque precisam estranhar um modo de vida de que quem não tem dinheiro não come. Até lá, não sei se usarão dinheiro, ou apenas uma tarjeta que possui dinheiro imaginário.

Estranhem o dinheiro imaginário. Afastem-se dele para analisá-lo. De onde sai. Eu sei que precisarão comer e usar o plástico mágico. Mas não o naturalizem. Porque enquanto naturalizarem de tal forma consentida, quem estuda para manter tudo como está ou para deixar tudo pior, estará aperfeiçoando novas formas de ganhar mais dinheiro ainda em cima do dinheiro de vocês.

Questionem tudo. Questionem a vida. Questionem a Guerra. A indústria de armas. A indústria da Guerra. Porque certamente, eu estou em 2013 e até as gerações de vocês, muitos lugares estarão em disputa. Sabe quem ganha no vídeo-game? Quem tem mais arma, mais munição. Um dia, em sala de aula, em 2013, eu disse que aqui no Brasil ainda não estávamos vivendo o que vive o Oriente Médio, porque o petróleo ainda manda na economia. Mas não faltam muitas gerações para a riqueza migrar para a água potável.

Onde tem maior concentração de água potável no mundo? Em 2013, não imaginamos um ambiente de guerra militar declarada no Brasil. Imaginamos apenas protestos. Mas estranhem! Muitas guerras acontecem sem as pessoas saberem. Não vivi isso, mas na Ditadura Militar no Brasil, teve quem nem soubesse do que estava acontecendo.

Estranhem a TV. A TV aberta, a TV fechada. Estranhem a forma como as novelas induzem as famílias a se comportarem. Ao comportamento das mulheres. Das crianças.

Na cultura, cuidado! Não naturalizem o que o rádio impor a ouvir. Se aparecer um estilo musical novo, não desqualifiquem, entendam de onde veio e o que significa. E se criarem coisas novas, não se abatam com o conservadorismo de gente que terá minha idade. Porque a guitarra foi um instrumento elétrico que mais chocou o mundo, mais irritou a camada conservadora da sociedade, quando na realidade foi a abertura de grandes processos de gente que não se contentava com imposições. Com consentimentos.

Não é natural que muitas pessoas tenham propriedades privadas incontáveis. Perguntem de onde saiu tudo isso. Terras, quantos hectares de terra um único CPF é capaz de ter? Não é, não foi e nunca será natural. 

Respeitem as pessoas. Questionem com solidariedade. Nem todo questionamento precisa ser truculento. Escutem as pessoas. Pergunte a história delas. Pode ser o parente mais próximo. Suas histórias de vida ressignificarão também a de um núcleo familiar inteiro. Entendam seus comportamentos. Porque o ser humano é o único animal capaz de retomar sua história. Nas aldeias indígenas, os mais velhos eram os mais respeitados. Porque carregavam a aldeia de história. Em 2013, maltratamos velhinhos. Marginalizamos sabedoria. Ignoramos a história. Assim a matamos. E deixamos que os outros construam nosso futuro ao não enxergarmos nossa história.

Questionem suas certezas. Eu vivo questionando as minhas. Porque muitas vezes pensamos ter certeza das coisas.

Este termo “desnaturalização”, foi muito utilizado por uma amiga na universidade. Eu espero que ela fique velhinha junto comigo e possamos reescrever muita história.

Sinto a necessidade constante de “desnaturalizar” as coisas, as relações, as ações, tudo. Porque enquanto tem coisas em 2013 que são lindas, tem outras que não são. E s coisas lindas contemplamos, dividimos, solidarizamos, afagamos, abraçamos, partilhamos, sorrimos!

Em 2013 ainda temos flores coloridas para contemplar. Ainda existem pássaros que não apenas pombos nos locais mais poluídos das cidades. Temos árvores. Nos lugares onde o capital não devastou, temos árvores! Não sei quantas teremos na geração de vocês. Mas onde houver alguma, sentem embaixo dela. Lua iluminando um gigantesco mar! Sintam o cheiro da terra. O cheiro de uma flor. A cor de uma flor. O poder do sorriso. Flores te fazem sorrir. Seja menino, seja menina. Não naturalizem que só meninas podem ter o prazer de ver a cor de uma flor. Uma borboleta colorida te faz prestar atenção em seu voo. Espero que conheçam as tantas borboletas que têm no Brasil. Será que ainda existirão joaninhas? Elas são fantásticas! Um inseto pequeno que dá alegria. Acreditem. Encontrei uma, certa vez na praia. Um lugar que jamais imaginaria encontrar uma joaninha. E ela me fez sorrir. Devolvi-a para o meio do mato, pois achei que morreria na areia.

Não tenham medo. Chamarão as pessoas curiosas e questionadoras, por uma eternidade, de chatas. Abstraiam... pois os chatos também sabem sentir satisfação, amor, prazer. 

Entre o que houver de novo, e o que conhecerem de velho, desnaturalizem e conheçam melhor. Porque não sei que tipo de carta poderão escrever para a geração dos netos de seus netos, para quem optar ter filhos. Mas que as palavras sigam sendo para sempre, sobretudo, endereçadas aos seres humanos capazes de se colocarem no lugar dos outros enquanto a ordem mundial seguir chamando-se de “Dona Injustiça”. Seja no tempo que for.
sexta-feira, 2 de agosto de 2013
Postado por Mundo Raimundo

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