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- Onde está o crime e qual a relevância de sê-lo?
Postado por:
Mundo Raimundo
sexta-feira, 16 de agosto de 2013
Vívian Andrade escreve para a coluna PolemiCÃO
Discuti
amplamente sobre o acontecido, posicionando-me a favor do protesto e
salientando uma questão que me parece clave: a responsabilidade individual de
fazer parte – por livre e espontânea vontade - de um grupo que prega o ódio a
certas minorias e busca cercear direitos de outras pessoas baseado em normas da
sua religião (e a sua religião é apenas uma dentre as milhares que há e que já
houve). Ou seja, se você vê que o grupo ao qual pertence faz mal a algumas
pessoas e ainda assim você participa dele, você tem responsabilidade pelo mal
que o grupo causa, ainda que não seja você o responsável direto. E se é assim,
você, antes de recriminar tal performance, deveria deixar de participar deste
grupo e ainda pedir desculpas às pessoas das minorias que foram prejudicadas
por você, mesmo que indiretamente. É aquela frase muito batida ultimamente (e
faz falta batê-la mais, pelo visto):
Não confunda a reação do oprimido
com a violência do opressor.
No entanto
não venho a expor minha justificativa aos meus argumentos favoráveis ao acontecimento
em questão. Desta vez, venho trazer à tona uma reflexão mais abstrata e mais
complexa, pois percebi em muitos posts e blogs a alegação de que a tal
performance era um crime. Pessoas, inclusive, sabiam o número dos artigos onde
se enquadrava... pessoas que talvez não saibam o número de mais de dois ou três
artigos da constituição, pessoas talvez que nem sejam tão religiosas. Reparei
como o argumento da ‘lei’ e do ‘crime’ é indiscutível para a maioria delas.
Quando tentei relativizar estes conceitos, alguns me acusaram de mau-caratismo
e de desonestidade. Portanto venho dividir com você o que estive matutando
acerca do crime, da lei e da Justiça.
A expressão
‘guerra justa’ ou injusta é uma expressão que se ouve por aí (no hino do estado
onde nasci, RS, existe a parte “nesta ímpia e injusta guerra”). Isto me fez
refletir sobre
Por que, não raro, a ‘Justiça’ está dentro do campo semântico de
‘Guerra’?
Parece uma
espécie de sem-sentido relacionar guerra à justiça, por dois motivos, na minha
opinião:
1 – Chega-se a uma guerra porque não houve justiça
anteriormente. A guerra, então, seria o cúmulo da injustiça.
2 - Em uma guerra, não ganha quem tem razão, senão o mais
forte.
Alguns dizem
que o esporte seria uma sublimação do desejo de guerra (de matar, humilhar,
subjugar, exterminar o outro). Sendo assim ‘Guerra’ estaria dentro do campo
semântico de ‘Esporte’. Há um desejo (embora se saiba que nem sempre sucede) de
que o esporte tenha um resultado justo, de que se faça justiça, muitas vezes a
justiça que não pode/pôde ser feita na vida real (pensemos em dois países que
estejam em guerra jogando um contra o outro). Neste caso, poderíamos desejar
que ganhasse o jogo aquele time ou aquela equipe que sentimos que tem a razão
no conflito fora do esporte, o que coloca a vitória não só no campo da Justiça,
como também no do ‘ter razão’.
A Razão, a
Verdade - segundo o que eu entendo de Foucault – seriam uma outra dimensão da
realidade, ou seja, um filtro através do qual eu vejo e catalogo toda e
qualquer informação. Ao escutar o que uma pessoa diz, ao reparar em algum
fenômeno, ao decidir que decisões tomarei no próximo dia: tudo isso e todo o
mais passa pelo filtro da Razão. Desta maneira, nos parece imprescindível e
lógico, em qualquer situação, julgar de maneira imparcial (é justo), escutar as
diferentes vozes (é verdadeiro e justo), considerar até onde vai a verdade
(enquadrá-la em padrões), levar em conta o que implica e quais as consequências
de dizê-la, escrevê-la, cogitá-la, etc. (testar no mundo real). Uma vez que
determinamos tudo isso, esta informação (que não deixa de ser o ponto de vista
de alguém, portanto relativíssimo), criamos certas crenças a respeito de um
assunto ou pessoa que se assemelha ao conceito de deus: um conceito que se
chegou através de certas averiguações, incontestável, passível de explicação, válido para todos em
qualquer lugar ou tempo. Já que se sabe que em geral não se morre por ideias e
sim por dogmas - essa Verdade, essa Razão, esse deus -, lutaremos para
defendê-los com unhas e dentes. E como a este deus se chegou por meio da
reflexão – há um método, o resultado encontrado está documentado - este deus é
científico. Eis então um dos fatos/deuses científicos: o crime.
A Justiça é
apenas uma ideia. A Justiça não é possível. Aquilo que buscamos que se realize
e chamamos assim não passa de um arremedo de um ideal. É somente uma tentativa
de conformar a sede de justiça do maior número de indivíduos possíveis. O Poder
Judiciário toma decisões que sejam, de alguma maneira, interpretadas como
justas. Veja bem, não que sejam justas, mas sim que pareçam justas. Quanto a
isso, nós, que não temos o poder de decidir sobre a justiça (e por que não?),
dizemos “ok, com este tipo de ação eu sinto que se fez justiça” ou “sinto algo
que faz menção ou presta homenagem ao conceito perfeito (e por isso existente
apenas no mundo das ideias) e ideológico de Justiça”, “ok, me dou por
satisfeita por essa encenação, com estes símbolos que têm a função de
representar a Justiça”.
Se realmente
tivéssemos interesse em decidir o que é justo, teríamos de avaliar a que
sistemas de valores todas as partes envolvidas estão expostas: quantos deles
permeiam as ações na hora de sentir-se saciadx de Justiça; que posição se toma
(que sistemas ignoro e quais não) na hora de tomar uma decisão dita razoável; que
sistemas de valores devem ser levados em consideração para cada decisão acerca
de um mesmo caso e como escolhê-los; quem terá autoridade para fazer com que sua
palavra seja mais válida, etc. Não é a lei que faz justiça, e tampouco é o
crime a falta dela. Não é porque é crime que é necessariamente mau, e não é
porque foi punido ou há uma punição prescrita que a Justiça se realizou.
Curiosamente, inclusive, existe em direito algo como um perdão judicial para no
caso de que alguém venha a cometer um crime, mas que este já seja uma pena para
aquelx que cometeu (pense no caso de umx bebê que morre asfixiadx por haver
sido esquecidx dentro do carro pelos pais). Este conceito se chama Extinção de
Punibilidade (Art. 107, IX, do Código Penal). É raro, mas existe. Sendo assim,
parece que fazer justiça vai muito além do que vigiar(-se) e punir.
Para mim, o fato de dizer “é crime” significa que tal ação - segundo um manual -é considerada como algo prejudicial e há uma punição para quem a fizer. Nada mais. E dizer que a performance na Marcha das Vadias é um crime não acrescenta em nada a discussão, que pode ser muito rica se não for encerrada dentro da nossa necessidade de encarcerá-la em nossas infinitas classificações prontas, ineficazes e falhas.
Observando como as pessoas se engalfinhavam nas discussões do tema, percebi que a Justiça mais do que nunca se assemelha a uma guerra: é a procura de um deus que se chama Verdade, com o qual eu posso aniquilar meu inimigo e possa justificar seu submetimento através da Razão, coisa contra a qual ninguém poderia argumentar, visto que a Razão se converteu no mesmo que a Verdade (e encontrar uma ou a outra converteu-se em prioridade... e, quem sabe, “a” prioridade). Parece-me que preferimos seguir forçando um resultado ilusoriamente positivo através de testes com os nossos conceitos perfeitos aplicados a uma realidade imperfeita de seres imperfeitos. Que desperdício tentar encontrar a Verdade, quando poderíamos ir muito mais além!
Sempre tudo é muito, muito, muito mais complexo do que se imagina. E se Foucault estava certo e vivemos na sociedade da vigilância; questionar, profanar, inverter e reverter conceitos deveria ser crime. Opa, já é.(Galileu Galilei mandou perguntar qual é mesmo o número do(s) Artigo(s) que criminaliza contestar a tradição).
Através das
leis e das normas, vejo, sobretudo, o intuito de defender o poder e o capital.
Além disso, há implicações muito prejudiciais: através de um sistema muito
habilidoso, nós, pessoas sem poder e sem dinheiro, somos afastados da
possibilidade e do acesso a decidir o que é justo (alienação). E sendo a
Justiça tão importante, sendo a Justiça uma das caras da realidade - boa e
correta, sendo o sistema judicial capaz de retirar todos os direitos de uma
pessoa, inclusive o seu bem mais preciso: sua liberdade... como pode o Poder
Judiciário, as leis, as penas acontecerem sem que tenhamos participação? Como
poderia eu deixar a cargo de outrem a Verdade? Como posso eu, quando me sentir
prejudicado ou for acusado de prejudicar, estar alheio ao que me é justo?
Quem não estiver de acordo, por favor,
debatamo-lo. Mi casa es su casa.
baita texto! muito bom anarquizar um pouco com as certezas correntes pelo mundo.
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