Postado por: Mundo Raimundo domingo, 13 de outubro de 2013




Olá, prezadx leitorx

Mudando de saco pra mala: esta é minha introdução no mundo da literatura, cuja obra é assinada pelo pseudônimo de Valentina Guadalajara. Muito obrigada pela leitura deste conto que se chama Os civilizados.



Os civilizados

A tribo vivia em frente ao mar. De um lado e de outro – porque as noções de esquerda e direita são muito imprecisas - e contra o mar havia morros. Não eram demasiado altos, no entanto estabeleceu-se por desempirismo que ali era o fim do mundo.
A gente daquele lugar não precisava cruzar aqueles morros. Como fariam para levar suas cumbucas, jarros e caldeirões? Como as crianças poderiam subir a parede verde? Como se protegeriam da potente luz solar que se escondia ali todos os dias? Acaso morreriam queimados? Com que objetivo?
Eles observavam o fim do mundo todos os dias, e não o temiam. O fim do mundo está, como está o fim dos homens e de todas as coisas.
Enquanto eram levadas a cabo tarefas rotineiras conforme a vontade de cada um, um menino atravessou a aldeia, correndo e gritando entre as casinhas de palha. Ele bradava algo incompreensível, nomeava algo que jamais fora visto antes no mundo. O rebuliço causou espanto e todas as mulheres se mobilizaram para encontrar aquilo que explodia da boca do menino.
Ele avistara, descendo um dos morros, ferido, sujo e sedento, um bicho estranho. Esse bicho era branco e não tinha pelos, apenas alguns que saiam de sua cabeça como fogo. O bicho vinha cambaleando, lá de onde termina tudo.
Uma vez capturado pelas mulheres, o animal raríssimo desmaiou.
Após dias e dias de chás, poções e cuidados, o homem abriu os olhos. Enquanto era observado por um grupo de crianças mudas e curiosas, contara que vinha de longe, que o mundo era muito extenso, que ia muito além daqueles morros verdes. As crianças correram para chamar os adultos, afinal alguém mais deveria ser testemunha de tão exótico relato.
Com a chegada das anciãs e anciãos, e recobrando a consciência completa, perguntara por estranhos trapos que trazia sobre seu corpo. Quando se formou o burburinho e não houve resposta alguma, apenas olhos arregalados a observá-lo, ficou um pouco envergonhado e irritado. Defendia-se de algo, foi a conclusão a que chegaram as sábias.
Com o passar dos dias, animou-se a contar as novidades do lado de lá. Dissera que do outro lado existia algo chamado “família”, e que cada mulher, cada homem e seus filhos formavam um pequeno clã. Também relatava a existência de frutos diferentes, e que o ar também era outro.
A tribo, escutando tudo atentamente, estranhou muito toda a conversa do bicho branco. Primeiro perguntaram o porquê de ele ter saído de onde vivia para descobrir algo que não pode usar. Segundo o bicho, o mundo era vasto e grande. Sendo assim, a tribo não via necessidade de ir a outro lugar. Se o mundo fosse pequeno demais, se o espaço não fosse suficiente para morar, plantar, viver ali, nesse caso seria útil e necessário, do contrário não. Essa lógica lhes pareceu muito estranha e contraditória.
Outro mistério era a preocupação com a tal “roupa” e a moléstia que o homem sentia de não tê-la consigo. No mundo, nada estava com ninguém, as coisas iam mudando, dali pra cá, de cá pra lá. Contudo o bicho disse que as roupas, lá de onde ele vinha, eram necessárias por causa do ar, era outro, fazia frio.
- O que significa “frio”?
- Um ar que dói quando bate na pele. Dói tanto que precisamos nos cobrir.
- Mas dói por quê? É como quando há muito vento e a areia bate na pele?
- É como quando há vento, mas vento mais frio.
- O que significa “frio”?
O bicho explicou o que era e como funcionava uma “família”.
- Se há apenas um homem e uma mulher e seus filhos, como saber se os filhos são daquele homem?
- Por que a mulher e o homem apenas têm relações entre si, é proibido que tenham com outra pessoa. Ter relações com outras pessoas é uma atitude reprovável e castigada.
- Mas o que são “relações”?
- Quando o homem coloca seu palito dentro da mulher, dentro daquele buraco, assim embaixo, por onde saem os bebês.
- As mulheres não podem nunca tocar em outros homens?
- Podem tocar desde que não seja com função de ter relações, podem abraçar, e podem beijar apenas no rosto. Ela apenas pode ter relações com seu marido, e os dois podem abraçar e beijar livremente apenas seus filhos.
- E qual é a diferença entre “ter relações”, “ beijar” e “abraçar”?
O bicho branco tentava explicar todas as nuances do contato físico e os diferentes tipos de abraços e beijos. A tribo entendeu, mas achou tão aleatório e complexo, e, sobretudo, tão desnecessário, que resolveu mudar de assunto.
- E se uma mulher e um homem tiverem muitos filhos, quem poderá cuidar de tantos filhos sozinhos?
Foi o forasteiro que não entendeu a pergunta. Ele nunca havia pensado que todos podiam cuidar dos filhos uns dos outros e que isso aliviaria o trabalho dos adultos, bem como as crianças teriam atenção e cuidado por mais tempo. Entretanto, o bicho dava valor demais àquilo que ele pensava novo, não estava interessado em escutar.
Ao fim de uma semana de tanto relato, o bicho branco resolveu continuar encontrando mais mundo, e como considerava que naquela tribo havia bons ouvintes, convidou alguns para participarem da sua aventura.
Seu pedido soava quase tão ridículo quanto tudo que havia contado sobre o lugar de onde viera. Apesar de todas as diferenças incompreensíveis, absolutamente todos os bichos brancos se tocavam, tinham relações, se amavam, caçavam, cozinhavam, tinham bebês. Todos eles trabalhavam e descansavam, festejavam e lamentavam. Sem exceção compartilhavam ideias à beira do fogo, contavam histórias e repartiam uma bebida. Apesar do vento e da comida, eram muito parecidos ali no mundo e no mundo muito maior. Todos bichos, uns marrons, outros brancos.
A tribo sabia que todas as coisas são desprovidas de sentido. Qual é a razão do mar? É estar ali, existindo. A razão de uma árvore era crescer, dar frutos ou não, e talvez um dia morrer ou ser arrancada pelo vento, que sempre volta e volta. O que faz o mar, a árvore e o vento bonitos ou feios, bons ou maus, somos nós. Tudo é igual aqui que em outro lado.
Para o bicho branco não restava outro remédio que continuar sua viagem sozinho. Na manhã seguinte ele se foi, enrolado em uma folha de bananeira, sob o olhar compadecido da tribo. Lá vai ele levando sua chama na cabeça. A chama de buscar mais mundo que não viver.




Valentina Guadalajara

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