Archive for setembro 2013

Um beijo provoca... o ódio?

Vívian Andrade escreve para a coluna PolemiCÃO



Um assunto delicado e talvez um conflito entre a liberdade de expressão e a liberdade de culto. Somente talvez. Mas, para mim, nada mais do que abuso de poder, homofobia, violência estatal e intolerância religiosa.
Duas meninas se beijaram em forma de protesto contra o pastor e deputado Marco Feliciano no evento evangélico ‘Glorifica Litoral’, no domingo 15 de setembro de 2013, na cidade de São Sebastião, interior de São Paulo. Eu estava presente e era uma das protestantes. Eu estava lá naquele verdadeiro show de alienação e ódio.


Estávamos conscientes de que era perigoso, já que éramos um grupo pequeno no meio de dois mil evangélicos. Sabíamos que fundamentalistas poderiam entender erroneamente que fomos até ali para protestar contra a sua religião, e, por isso, sentíamos um misto de medo, coragem e adrenalina.
Reunimo-nos em uma praça e saímos marchando, apitando e gritando coisas do tipo “Fora Feliciano” e “Doutor, eu não me engano: quem não tem cura é Feliciano”. O nosso grupo de amigos acordou de irmos todos de sutiã, principalmente os meninos. Escrevemos frases de protesto em nossos corpos e cartazes e, após dar uma volta do lado de fora do espaço em que ocorria o evento, entramos. Começava o show de uma cantora que, ao ver nossos cartazes de repudio a posturas homofóbicas e contrários ao deputado fake de pastor, começou a dizer que o demônio estava presente e estava provocando o povo de deus. Muitas outras indiretas comparando-nos ao Tinhoso Coisa Ruim foram lançadas pela cantora. A polícia nos abordou no meio da multidão e nos ameaçou com um artigo da constituição que criminaliza a perturbação e vilipendio de culto religioso que poderia nos colocar na prisão por até um ano. Pediram que baixássemos os cartazes, o que todos nós consentimos para não sermos levados presos. Desta maneira, nossos únicos objetos de protesto se converteram em nossas presenças e nossos corpos. Aguardamos o final do show e a entrada do deputado Marco Feliciano para que pudéssemos fazer o que viemos fazer: protestar contra suas posturas racistas, homofóbicas e machistas. Mal o pastor começou a falar, duas meninas, menininhas, foram alçadas por amigos e se beijaram. 

Joana Palhares, 18 anos, e Yunka Mihura, 20 anos. 
    
O pastor chamou a polícia, ofendeu de diversas maneiras a nós, todos os protestantes, e as meninas foram retiradas com truculência pela polícia. Elas foram agarradas com violência, alçadas e levadas para trás do palco, onde foram agredidas com tapas na cara. Enquanto isso, o pastor incitava palavras de ódio e a multidão vibrava com o horror daquela agressão toda. Como se não bastasse, o pastor ameaçou a imprensa para o caso de que o incidente fosse mais noticiado do que o evento em si. Também sentenciou de que a verdadeira resposta viria das urnas, quando elegerão a maior bancada evangélica jamais vista.
As meninas foram algemadas e levadas à delegacia, onde chegaram antes da meia-noite e só saíram por volta das três horas da manhã, após deporem, passarem por exame de corpo e delito, mas – óbvio e principalmente – era requerida a presença de um advogado para a sua liberação.
Muitos questionamentos vêm à minha mente.
- Com que autoridade uma acusação é transformada em culpa sem a presença de um juiz?
- Com que poder o deputado manda suprimir a liberdade corporal de duas pessoas e é atendido pelas forças de repressão do Estado (polícia)?
- Se o crime é perturbação de culto, quem decide se realmente se está perturbando?
- Como um beijo entre duas meninas perturba um ato religioso? Acaso o tal beijo impede os participantes do evento de adorarem seu deus?
- Por que um beijo constitui perturbação? Seria a religião evangélica homofóbica para incomodar-se tanto com um beijo gay?
- E se a religião evangélica é homofóbica, porque pertencer ou propagar ideias evangélicas não constitui crime?



E mais uma vez volto à questão da lei, como no meu texto anterior Onde está o crime e qual a relevância de sê-lo?. Quem a lei defende? Quem controla a lei e a sua execução? Como podem as acusadas não terem o poder de recuperar a sua liberdade corporal, sendo que sua prisão é arbitrária, já que beijar pessoa em local público não constitui crime?
É a alienação do sujeito em relação ao seu próprio corpo e à sua liberdade.

À custa de muita perseguição, damo-nos conta de que nosso corpo e nossa liberdade são o que existe de mais fundamental. Quando outra instância tem tamanho poder sobre as pessoas, não existe, para mim, outra interpretação que não seja a de que somos todos escravos.
Você não pode escolher estar aparte das leis ou estar sujeito a outras leis, mesmo que viva isolado. Você não pode usufruir dos benefícios do Estado (mesmo que viva dentro dele e pague tributos pelo que consome) se não obedecer a todas as suas exigências. E mais: você não pode discutir nem questionar a lei.
No entanto, ao mesmo tempo que o corpo e a liberdade corporal são fundamentais e o Estado deixa bastante claro que é dono delas, o mesmo Estado tende a conter a vontade de eliminação, de supressão do “sujeito” que perturba, já que sem o “sujeito” (muitas aspas: favor repensar a definição de sujeito) o Estado perde seu poder. Ao mesmo tempo que escraviza, doutrina, aliena e bitola; preserva de maneira perversa aquilo que sobra de modo a estender seu poder a outros indivíduos que vem adentrando o sistema.

Agora penso sobre a comoção que causa o abuso declarado de poder – ou apenas aquilo que identificamos como abuso – e a agressão ao corpo, o que simboliza. Estaríamos viciados no sacrifício alheio? Estaríamos ávidos pela agressão para poder identificar de onde vem esta força que nos aplasta? Por que permitimos os abusos do poder na maioria dos casos, mas quando se trata do corpo, nos revoltamos? Quem nos fez crer que o limite é este? Porque minha vida e minha liberdade devem estar confinadas à minha pele e não na esfera de relações ao meu redor? Quem nos aprisionou no corpo? São apenas reflexões.



           Falando sobre o que é apropriado ou não em um culto religioso: pode algo que está dentro da lei ser considerado inapropriado e causar prisão? Quem se excede quando isso acontece? A polícia? O deputado InFelicianus? A multidão que vibrava com o show de horror e violência? Como pode um opressor se julgar oprimido dentro do seu próprio espaço, que antes de tudo é espaço público? Ah, e financiado com dinheiro público, prezado “eleitor” (aspas para repensar quem elege e quem é eleito).
Evitei ler os comentários no Facebook das páginas e das pessoas que compartilharam a notícia. Não saberia por onde começar a argumentar e duvido que muitas pessoas estejam dispostas a refletir. A religião é dogma, e como tal não segue uma lógica... é fé, e a fé não se discute porque não há argumentos racionais, ou seja, não existe lógica na fé. A fé é a ausência da lógica, é onde esta esbarra encontra um abismo-limite devido à nossa impossibilidade de entender ou de explicar fenômenos. Talvez a nossa necessidade (soberba) de explicar as coisas seja o problema. Enfim, como dogma, como falta de lógica, a religião ensina às pessoas que elas têm o direito de fazer afirmações que não tem sentido, e o pior: que elas não têm responsabilidade pelas asseverações que colocam no mundo. E se não tem sentido, não há argumentação que o valha. Discutir com um religioso é discutir com as paredes.
Eu não gosto das religiões nem da fé. Gostaria que pudéssemos viver com a dúvida, com os ocos de sentido – milhões, bilhões – que constituem todos os infinitos: o infinito macro (para fora) e o infinito micro (para dentro). Considero a fé uma infantilidade, um déficit emocional; e estou disposta a discutir sobre isso. Quem se sinta tocado, por favor, este espaço é para isso (embora este texto não se proponha a discutir religiosidade e ateísmo, e sim o protesto feito contra o deputado e presidente da comissão dos Direitos Humanos... e vá lá saber direito de quem).
Dentro daquilo que penso como bom e correto está conviver com a dúvida. É uma condição sine qua non para se respeitar o outro, para que haja tolerância e boa convivência. A fé me parece uma necessidade de buscar um valor fora, um valor individual, especial, diferencial. E fico triste que alguém pense que o tem ou que seja possível tê-lo. É como eu digo: não somos mais nem menos, apenas somos assim como todas as coisas são, foram e serão.
É tão triste ver que tanto oprimidos quanto opressores mantém uma guerra ideológica que não faz mais do que alimentar o mesmo sistema. Um apelo: no sistema estão previstos estes embates, eles sempre existiram: revoltas, guerras, protestos, revoluções. Acho importante lutar por um espaço onde não se é oprimido, mas também acho importante, de alguma forma, deixar de alimentar esses conflitos que são tão simplesmente suprimidos, desvirtuados, descaracterizados, manipulados pela História e por aqueles que a escrevem. Parece-me necessário lutar contra o opressão dentro do sistema, como também dedicar tempo a sair dessas amarras, escapar das leis e das infrações.

Se o corpo e a nossa liberdade corporal são primordiais, uma prisão indevida (sem falar no ódio ao diferente praticado através da homofobia e da agressão física e moral sofrida pelas meninas) não seria a maior afronta contra os direitos individuais? Não seria esta prisão motivo de revolta de toda e qualquer pessoa, independente de convicções religiosas ou não? Não seria um fato tão grave, mas tão grave, que todo indivíduo deveria ver sua “autonomia” (estas aspas, hum, já sabem) assustadoramente posta em risco?
Neste texto há apenas algumas perguntas. Algumas. E não tem fim porque nada tem fim.

Quem quiser (se é que é apenas uma questão de querer...) que continue.




Informações importantes e adicionais:


O observador da religiosidade: Glorifica Litoral e o beijo de Joana 



Posicionamento da Ordem dos Advogados Brasileiros no JusBrasil: Feliciano manda prender gays após beijo 





Mídia internacional (TN é uma grande canal de televisão da Argentina): Diputado ordenó arresto de chicas por besarse en un culto


Facebook da Joana Palhares

Facebook da Yunka Mihura 


quinta-feira, 19 de setembro de 2013
Postado por Mundo Raimundo

Um causo gauchesco numa noite de novembro

Ane Brasil escreve para a coluna Soy Contra!

Estávamos todos acampados. Quanto tempo de peleia já? Quincas até barba na cara já tinha, Domingos estava magro, Eleutério puxando de uma perna por conta de uma pranchada bem dada por um imperial. Compadre Leôncio estranhou, quando deram ordem pra entrega das cartucheira. Ala pucha, então vão deixar soldado com arma mas sem munição? De onde partiu essa ideia mal arrumada? Ninguém respondeu. Levaram as cartucheiras, algumas armas também. Ali permanecemos, em campo aberto, sonhando com a liberdade prometida, curando a saudade das mulheres e filhos com alguma cachaça. Tudo parecia normal, não fosse compadre Leôncio olhando pra mim por baixo do chapéu, aquele olhar dele encafifado.
- Vem cá, guri, me diz: quanto tempo tu tá na peleia?
- Cheguei não sei faz quanto tempo, acho que no tempo de duas ou três invernadas...
- E tu já é homem?
- ora... que pergunta, besta, sou homem...
- tô perguntando se tu já te deitou com mulher, piá.
Baixei a cabeça. Compadre Leôncio tinha adivinhado. Saí novinho da fazenda para lutar com os farrapos. Tentar a liberdade pra mim e pras minhas irmãs... Não, eu ainda não havia me deitado com mulher.
- Pues, guri, não é vergonha. Tu é guri bom, guri forte, há de arranjar pra ti uma que se encante. Pega  esse cavalo e galopa pra bem longe daqui. AGORA.
Compadre Leôncio não era meu compadre e nem tinha batizado filho de nenhum homem ali, mas todos o chamavam por compadre. Bom cavalariano, excelente ferreiro e conhecedor de todos os caminhos era compadre Leôncio responsável por ter salvado algumas vidas do nosso destacamento. Cada um contava uma história a respeito dele. Uns diziam que tinha matado a mulher e os filhos num acesso de loucura, outros diziam que a mulher tinha sido morta pela sinhá no tronco,  outros diziam que  ele tinha matado meia dúzia de índio numa escaramuça, mas o certo é que todos gostavam de compadre Leôncio, homem honrado, justo, cumpridor da palavra. Não era dado a demonstrações de sentimento. Ser chamado em particular por compadre Leôncio era quase uma distinção. Mas aquela ordem era uma ordem pra deserção. Era uma ordem pra desonrar meu juramento de lanceiro, pra renegar minha condição de homem, de guerreiro... era pra renunciar à liberdade. Eu não entendi, também não ousei retrucar, mas compadre Leôncio parecia ler na alma das pessoas. Ali, naquela noite escura ele leu a cara de um guri assustado.
- É isso, guri, tu vai desertar pra salvá tua vida. Quem fica aqui essa noite  vai morrer e tu, guri, eu lembro como se fosse ontem, eu pessoalmente te tirei debaixo do braço da tua irmã Rosa e prometi pra ela que te devolvia inteiro. Sou homem de palavra. Agora vai.
Se por um lado desertar era uma desonra, por outro lado também não ousava contrariar o compadre Leôncio, aquele general sem divisas, aquele estrategista sem estudo, aquele irmão de todos nós nas escaramuças.

(Talvez essa história tenha acontecido, talvez não, talvez, talvez... nunca contaram a História dos homens de Porongos)


segunda-feira, 16 de setembro de 2013
Postado por Mundo Raimundo

Who the fuck is Matthias Wähner?


 Samy escreve para a coluna Sem Título



A definição mais aceita do termo “fotojornalismo” costuma ser “registro fotográfico feito pelo jornalista para ilustrar, comprovar ou dar veracidade a textos de reportagens”. Contudo, a definição acima poderia muito bem ser uma pergunta. Afinal, o fotojornalismo pode mesmo ser definido dessa forma? Não para Matthias Wähner, artista alemão que curte uma traquinagem. Digo, artista alemão nascido em Berlim, em 1953, formado em Arte, História da Arte, Filosofia e Pedagogia da Arte pela Ludwig-Maximilians-Universität München. As obras de Matthias – tanto a fotográfica quanto a audiovisual e a acadêmica - são uma forma irônica de criticar o fotojornalismo. Seu trabalho mais conhecido é a série Mann ohne Eigenschaften (1994). Esse título, traduzido para o português como O homem sem qualidades, é a apropriação do nome de um livro de Robert Musil. Em tal série, Wähner insere sua figura, por meio da manipulação digital, em fotografias históricas do século XX as quais foram divulgadas na mídia.
Um exemplo é o retrato da Família Real no dia do funeral de Wallis, Duquesa de Windsor, o qual ocorreu na capela de São Jorge, no Castelo de Windsor, em 29 de abril de 1986. Na fotografia, vemos à esquerda, Príncipe Charles e Princesa Diana; no meio, Matthias; à direita, Rainha Elizabeth e Philip, Duque de Edimburgo. Tal imagem, à primeira vista, não causa nenhum tipo de estranhamento, sobretudo porque Wähner está vestido a caráter – traje, aliás, que ele usa em todas as suas montagens – e não se percebe nenhum erro de proporção.
O artista também se insere ao lado de outras personalidades famosas e ironiza diferentes situações:
Matthias finge ser o quinto integrante dos Beatles;

Observa, à esquerda, o corpo de Che Guevara, morto em 1967;

Passeia de mãos dadas com Brigitte Bardot;

Ajoelha-se ao lado de Willy Brandt, diante do Memorial aos Heróis do Gueto de Varsóvia, em 1970;

Aparece junto com o astronauta Neil Armstrong;

Abana para a multidão junto com John F. Kennedy;

E vejam que maravilha, posa para foto ao lado de Superman.

Se antes os dirigentes soviéticos faziam desaparecer presenças incômodas das fotografias, Wähner faz o oposto: ele é uma espécie de intruso banal que participa da cena, que aparece onde não foi chamado. O trabalho de Matthias é uma crítica à mídia e à credibilidade que lhe é concedida. Além da presença do elemento irônico, a série Mann ohne Eigenschaften visa criar um jogo entre o real e o ficcional.
Joan Fontcuberta publicou, em 1997, o livro El beso de Judas. Fotografía y Verdad, no qual ele afirma que a fotografia, sem exceção, é uma ficção que se apresenta como verdadeira. É necessário que o observador perceba que, ao contrário do que diz o senso comum, a fotografia mente sempre, mente por instinto e mente porque sua natureza não lhe permite fazer outra coisa. É exatamente isso que Wähner demonstra em seu trabalho. As fotografias em tons de preto e branco complementam o artifício documental que valoriza mais a função temporal da imagem. As imagens ironizam a pretensão documental da fotografia. Através desse jogo manipulativo, questões referentes à verdade e à alteração de fotografias documentais em prol da arte são levantadas.

E para quem pensa que a manipulação fotográfica se disseminou somente após a era digital, assista ao curta A lenda do fotógrafo oficial, presente no filme Amintiri din epoca de aur (Contos da Era Dourada, 2009).
* Encontrei somente uma parte legendada em inglês no Vimeo ou inteiro e sem legendas no Youtube.

sábado, 7 de setembro de 2013
Postado por Mundo Raimundo

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